Imagine a seguinte cena: um agricultor levanta cedo, planta sua lavoura, cuida da terra, colhe o que semeou e guarda um pouco das sementes para replantar. E então, surpresa: é processado. Não por roubo, invasão ou contrabando — mas por fazer o que a humanidade faz desde que o mundo é mundo: replantar suas próprias sementes.
Sim, você leu certo. Diz o ditado que recordar é viver, então vamos lá: em 2018, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, com toda a pompa e o tecnicismo jurídico, que se a semente contiver algum gene transgênico patenteado, o agricultor já não pode mais usá-la livremente. Ou melhor: até pode, desde que pague — de novo e de novo — como num sistema de assinatura vitalícia. Uma espécie de “Netflix rural”, só que obrigatória.
Segundo essa decisão (REsp 1.610.728/RS), a nossa Lei de Proteção de Cultivares vale, sim… mas apenas quando não interfere nas patentes das multinacionais sementeiras. É a famosa “lei com rodapé”: aplica-se com rigor ao pequeno, mas se curva ao grande.
Sejamos francos: desde quando uma empresa cria uma semente? Seja de soja, milho ou algodão… até hoje, nenhum laboratório do mundo fabricou um grão do zero, em tubo de ensaio. O que se faz é inserir um gene aqui, um evento ali. Mas a semente — aquela que brota da terra, cresce com sol e chuva, com o suor do agricultor — essa não nasceu com CPF, CNPJ ou código de barras.
Leitor, atenção: a tese fixada pela Corte afirmou que o direito do agricultor de guardar e reutilizar suas sementes — garantido expressamente pelo artigo 10 da Lei de Cultivares — não se aplica quando há um evento transgênico patenteado. Em outras palavras: se há tecnologia na semente, o direito do agricultor desaparece — como que por encanto judicial.
Mas há um problema grave aqui: quem criou essa tecnologia não criou a semente, concorda?
Nenhuma multinacional criou a vida. Elas inserem genes, otimizam características, fazem melhoramentos. Mas a essência biológica da semente não é invenção humana — é patrimônio genético da natureza e da agricultura milenar. Tratar a transgenia como se transformasse o grão inteiro em propriedade privada absoluta é atribuir status de patente à própria vida vegetal — o que é, no mínimo, perigoso.
O equívoco é duplo: jurídico e ético.
Do ponto de vista jurídico, a decisão viola a literalidade da lei. O artigo 10 da Lei de Cultivares nunca foi subordinado à Lei de Patentes — nem há previsão legal que sustente tal exclusão.
Eticamente, a decisão ignora o fundamento mais básico da agricultura: plantar, colher e replantar. Transformar o ato de guardar semente em infração contratual ou crime de violação de patente é impor ao campo a lógica da indústria: tudo se compra, tudo se consome, tudo se renova por contrato.
Mas o campo não funciona assim. E o Brasil — grande produtor de alimentos, guardião de sua biodiversidade e herdeiro de saberes agrários seculares — não pode se curvar a uma jurisprudência que criminaliza o agricultor por fazer o que sempre fez: guardar sua semente.
Corrigir essa decisão não é apenas proteger o artigo 10 da Lei de Cultivares. É um resgate civilizatório. É garantir ao agricultor o direito de plantar com segurança, de existir no campo com dignidade, sem ser tratado como violador por causa de sua própria colheita.
Porque a semente nunca foi só genética.
Ela é cultura.
É história.
É segurança alimentar.
E, acima de tudo, é liberdade.
Charlene de Ávila é Advogada, mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura do escritório Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin é Advogado Agrarista especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. É Diretor Administrativo do Escritório Néri Perin Advogados Associados.