No Brasil, a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996) veda explicitamente o patenteamento de todo ou parte de seres vivos naturais, incluindo sementes. Além disso, a Lei de Proteção de Cultivares (Lei nº 9.456/1997) garante ao agricultor o chamado “direito de uso próprio”, ou seja, a possibilidade de guardar sementes da própria colheita para replantio, sem necessidade de pagar royalties ou depender da indústria a cada nova safra.
Em tese, isso deveria proteger o direito do agricultor de salvar e reutilizar suas sementes sem restrições. Porém, grandes corporações sementeiras contornam essa vedação por meio de patentes indiretas sobre processos, genes ou transgenia.
Esses direitos deveriam ser a pedra angular da soberania do agricultor. Mas não são. O que se vê é o completo vilipêndio legal e jurídico desses direitos. Com o advento das sementes transgênicas — protegidas por patentes de processos, moléculas de DNA etc. — esse direito histórico e fundamental foi esvaziado e neutralizado, sob os auspícios de um modelo legal que se curva aos interesses corporativos.
As sementes, hoje, são tratadas como se fossem propriedade intelectual fechada, absoluta, que podem ser comparadas a softwares com licença de uso. Ao incorporar genes modificados ou características transgênicas, passam a ser vistas pelo sistema jurídico como “portadoras de tecnologia”, e não mais como insumos agrícolas naturais. Assim, o simples ato de replantar uma semente própria vira, por mágica jurídica, infração contratual e violação de patente.
O resultado? O agricultor paga para plantar, colhe, e depois precisa pagar de novo para plantar aquilo que já é seu. Um ciclo de dependência travestido de inovação.
Esse cenário não se mantém apenas pela força do contrato ou do poder econômico, mas é legitimado e reforçado pelo Poder Judiciário brasileiro. A interpretação predominante nos tribunais tem sido favorável às empresas multinacionais, que buscam proteger seus “direitos de propriedade intelectual” por meio de ações judiciais que coibem o uso próprio das sementes pelo agricultor, mesmo quando este está assegurado por lei.
A jurisprudência nacional tem feito uma leitura tortuosa e perversa da legislação. Em vez de proteger o produtor e o princípio da não patenteabilidade de sementes, os tribunais têm repetidamente afastado a Lei de Cultivares, alegando que a proteção recai não sobre a semente em si, mas sobre a “tecnologia embutida” nela.
Isso evidencia uma tendência clara: o Judiciário brasileiro tem operado como vetor de privatização da agricultura, por meio de patentes disfarçadas e contratos leoninos. O “cavalo de Troia” já entrou no campo — e, a menos que se reaja política e juridicamente, o campo brasileiro será sitiado por royalties e obrigações que tornam o produtor refém de decisões tomadas em laboratórios e tribunais, longe da terra.
Mais do que uma questão técnica, essa situação revela um problema estrutural do sistema jurídico brasileiro, que, em vez de proteger a soberania alimentar e a justiça social no campo, atua como vetor da mercantilização extrema da semente e da dependência do agricultor. O direito, que deveria ser instrumento de equilíbrio e proteção social, converte-se em ferramenta de exclusão e controle.
Esse fenômeno tem consequências graves para a agricultura nacional: ao consolidar a tutela das sementes pelas multinacionais via Judiciário, o Brasil abre mão de sua autonomia tecnológica, diminui a diversidade genética explorada e deixa o produtor em posição de vulnerabilidade constante, à mercê de altos custos, contratos desiguais e ameaças legais.
Caros leitores, o debate aqui não é contra a tecnologia. É contra o monopólio travestido de inovação. É hora de resgatar a função social da semente e exigir que a lei volte a ser respeitada. Porque, sem soberania sobre a semente, não há independência na lavoura — e muito menos na alimentação.
A autonomia do produtor rural não será reconquistada sem que o Poder Judiciário reavalie sua postura, equilibrando a proteção à inovação com os direitos constitucionais dos agricultores. Sem um olhar crítico e justo do sistema legal, o país continuará assistindo passivamente ao sequestro da semente, ao estrangulamento econômico e à judicialização da vida no campo.
É urgente que o debate sobre a propriedade intelectual no campo avance para além dos contratos e dos interesses corporativos, incorporando a voz do agricultor e os princípios de soberania alimentar — segundo tratados internacionais ratificados pelo país —, para que o direito realmente sirva à agricultura brasileira — e não o contrário.
Charlene de Ávila – Advogada, mestre em Direito, consultora jurídica em propriedade intelectual na agricultura, no escritório Neri Perin Advogados Associados – Brasília-DF.
Néri Perin – Advogado agrarista, especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor administrativo da Neri Perin Advogados Associados – Brasília-DF.