Em pleno século XXI, quando tanto se fala em inovação, sustentabilidade e autonomia no campo, o agricultor brasileiro continua à mercê de um sistema perverso de dependência legalizada. Um sistema que usurpa, disfarça, rotula e depois vende de volta aquilo que sempre foi do produtor: a semente — ou melhor, o direito inalienável de replantar aquilo que ele mesmo cultivou, sem pedir licença, sem pagar royalties e sem ser criminalizado.
A ironia é cortante: a Lei de Propriedade Industrial brasileira proíbe, de forma clara, o patenteamento de sementes. Mas, na prática, isso se tornou apenas um detalhe inconveniente. Empresas multinacionais contornam a letra da lei com técnicas jurídicas refinadas e protocolos contratuais que transformam a exceção em regra e o direito em infração. O resultado? A autonomia do agricultor vira mercadoria, enquanto o solo brasileiro é invadido por cláusulas, patentes disfarçadas e licenças que custam caro — financeira e politicamente.
O chamado “privilégio do agricultor”, assegurado formalmente pela legislação brasileira, não passa hoje de um amontoado de palavras mortas em páginas de lei que o próprio Estado ignora. O que deveria ser um direito inviolável — o de guardar e replantar a própria semente — foi lentamente sufocado por um aparato jurídico-legislativo envernizado de modernidade e eficiência, mas que opera, na verdade, como um braço regulatório a serviço das multinacionais sementeiras.
No centro dessa engrenagem está a neutralização programada do chamado “privilégio do agricultor”, previsto no artigo 10 da Lei de Cultivares. Essa cláusula, que deveria garantir o direito ao uso próprio da semente, é sistematicamente vilipendiada. Basta que haja algum traço de tecnologia embutido — ainda que mínimo — para que o agricultor perca sua liberdade e passe a operar como um “usuário dependente” da biotecnologia licenciada, condicionado por contratos unilaterais e cláusulas abusivas.
O mecanismo é sutil, mas implacável: esvazia-se o direito não por sua revogação explícita, mas por sua neutralização estratégica, por meio de interpretações jurídicas enviesadas, contratos leoninos e tecnicalidades travestidas de proteção à inovação. A cada safra, o agricultor se vê encurralado por um sistema em que a terra é sua, o trabalho é seu, mas a semente pertence ao outro — e sempre pertencerá.
E o Judiciário? Em vez de garantir o equilíbrio entre inovação e soberania alimentar, alia-se aos argumentos corporativos, ignorando a função social da terra e da produção. O resultado prático é uma jurisprudência que, em vez de proteger o produtor nacional, institucionaliza a colonização biotecnológica do campo brasileiro.
A engenharia jurídica aplicada nesse processo é digna de nota: uma semente geneticamente modificada passa a carregar consigo não só traços genéticos, mas um pacote invisível de royalties, cláusulas contratuais compulsórias e renúncia antecipada de direitos. A figura do agricultor se transmuta: de guardião milenar da biodiversidade, converte-se em mero usuário autorizado, licenciado e condicionado, cujo direito de plantar depende da anuência de quem jamais pisou no solo.
Pior: quando o agricultor resiste e reivindica sua autonomia, é o próprio Judiciário que se interpõe como muro, e não como ponte. A leitura das leis é adaptada, reescrita e reinterpretada para acomodar a lógica das patentes industriais dentro de um campo que deveria estar fora do alcance da especulação tecnológica. O resultado é claro: a Constituição é pisoteada, a soberania alimentar é ridicularizada e a produção de alimentos torna-se uma extensão de escritórios corporativos estrangeiros.
A realidade é cínica: o uso próprio da semente — algo que deveria ser tão natural quanto respirar — agora exige autorização, pagamento, contrato e submissão. O agricultor, ao final, não cultiva mais liberdade nem alimento: cultiva dependência.
Essa estrutura, construída sob o disfarce da inovação e da competitividade, escraviza o campo com correntes legais, burocráticas e financeiras. O privilégio do agricultor, outrora símbolo de equilíbrio entre tradição e direito, hoje não passa de um adereço retórico, ornamental e inútil frente ao rolo compressor jurídico das corporações transnacionais.
Chegamos a um ponto em que a agricultura nacional depende de autorizações para existir. Onde o direito ao replantio virou “infringência”. Onde quem cultiva é fiscalizado, mas quem monopoliza é premiado.
É hora de revermos, com urgência, os pilares jurídicos e políticos que sustentam esse modelo de dependência. Caso contrário, seguiremos com um agronegócio moderno na retórica, mas colonizado na prática.
Charlene de Ávila, Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura de Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin, Advogado agrarista, especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo da Néri Perin Advogados Associados.