O título que abre esta análise não é apenas uma constatação – é uma sentença sobre décadas de negligência deliberada, onde o crédito rural funciona sob uma lógica perversa: socializar prejuízos e privatizar lucros.
Caros leitores, nas últimas semanas, as manchetes sobre o agronegócio brasileiro voltaram a carregar um tom de alerta: “Crédito rural em colapso”, “Juros de 40% ao ano sufocam produtores”, “Precisamos de uma política de seguro sólida para o produtor”.
São frases que ecoam não apenas o desespero de quem produz, mas também o sintoma de um sistema de apoio ao campo que opera sem amortecedores reais. O país que se orgulha de alimentar o mundo expõe, paradoxalmente, a fragilidade da segurança econômica de quem planta.
O quadro atual revela o que há muito tempo se tenta ignorar: o crédito rural brasileiro está preso num modelo de alto risco e baixa previsibilidade, onde o seguro rural ainda é periférico e o orçamento público errático compromete a estabilidade de toda a cadeia produtiva. Chamar o orçamento público para o crédito rural de “errático” é quase eufemismo. O que temos é uma montanha-russa orçamentária que oscila conforme a temperatura política do momento. Ano eleitoral? Recursos abundantes, juros subsidiados, prazos generosos. Ano de ajuste fiscal? O campo que se vire, e os produtores rurais que engulam juros de mercado – quando conseguem acesso ao crédito.
Enquanto o produtor rural brasileiro paga juros que ultrapassam 30% ao ano fora das linhas oficiais (que, mesmo subsidiadas, estão travadas ou insuficientes), países como Estados Unidos, Espanha e Canadá operam com mecanismos de seguro rural integrados ao crédito, de forma sistêmica e perene. Lá, o seguro não é um acessório: é a base que dá segurança à tomada de crédito, permitindo que o sistema financeiro precifique o risco com racionalidade. Aqui, o risco é pulverizado no produtor, que paga caro por um sistema que o desampara quando mais precisa.
A ex-ministra da Agricultura e hoje senadora Tereza Cristina sintetizou, na abertura nacional do plantio da soja 2025/26, o que boa parte do setor pensa, mas poucos enfrentam: “Precisamos de uma política de seguro rural sólida”. A frase é simples, mas carrega o diagnóstico mais contundente da década.
Desde a criação do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), o Brasil avançou pouco em termos estruturais. O orçamento é instável — cortado em 42% apenas em 2025 —, a cobertura atinge menos de 16% da área agrícola nacional, e as seguradoras operam num ambiente de incerteza fiscal e jurídica. O resultado é previsível: prêmio alto, adesão baixa e desconfiança generalizada.
Sem previsibilidade orçamentária, não há política de seguro que resista. A cada safra, o governo anuncia recursos que não se materializam ou que são contingenciados. E quando o Estado falha, o produtor recorre ao crédito caro e ao endividamento. Essa lógica é o oposto do que se observa em países com políticas maduras, onde o seguro rural é política de Estado — e não ferramenta de governo.
O grande gargalo do modelo brasileiro não é apenas financeiro — é político e conceitual. O PSR depende do humor fiscal da União. O produtor pequeno ou médio, sem acesso a linhas de crédito oficiais, permanece desassistido.
Além disso, o Brasil opera sem planejamento plurianual de risco agrícola. O seguro rural deve ser visto como infraestrutura institucional da agricultura, não como gasto. Assim como estradas e armazéns, ele é o que sustenta a produção quando o clima, o mercado ou o crédito falham. É preciso blindar o PSR do contingenciamento político, garantir continuidade e incluir quem está à margem.
Sem isso, o país continuará vivendo de safras de euforia e entressafras de desespero, oscilando entre recordes de exportação e pedidos de renegociação de dívidas.
Uma política de seguro rural sólida é, mais que uma demanda econômica, um imperativo de soberania. E soberania, no campo, se conquista com estabilidade, e não com improviso.
Não faltam estudos, modelos internacionais ou diagnósticos sobre o que precisa ser feito. Um sistema sério de crédito rural exigiria três pilares inegociáveis: seguro obrigatório e subsidiado, orçamento plurianual estável e mecanismos transparentes de avaliação de risco. Nada disso é tecnicamente complexo — países como Estados Unidos, Canadá e Austrália o fazem há décadas.
E os produtores, esses heróis anônimos do PIB, seguirão pedindo não privilégios, mas o mínimo: condições de trabalhar sem ser estrangulados pelo próprio país que dizem representar.
Aliás, sem seguro rural sólido, não há crédito confiável, nem previsibilidade produtiva. O Brasil ainda aposta na sorte – enquanto seus concorrentes planejam o risco.
Charlene de Ávila — Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura de Néri Perin Advogados Associados – Brasília-DF.
Néri Perin — Advogado Agrarista, especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo da Néri Perin Advogados Associados – Brasília-DF.