O Supremo Tribunal Federal acaba de suspender a única decisão que poderia libertar o produtor rural brasileiro do maior cartel já tolerado pelo Estado: a Moratória da Soja. É preciso dizer com todas as letras — esta é uma capitulação institucional vergonhosa.
Em 5 de novembro passado, o ministro Flávio Dino concedeu liminar suspendendo nacionalmente todos os processos relacionados à Moratória da Soja, inclusive — e aqui mora o escândalo — a decisão técnica do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que havia identificado fortes indícios de cartel e determinado o fim dessa aberração jurídica e econômica.
A justificativa? “Segurança jurídica” e “evitar tumulto processual”. Como se 19 anos de cartel operando livremente não fossem o verdadeiro tumulto.
O que o discurso ambiental esconde
Aproximadamente 90% das empresas compradoras são signatárias da moratória. Isso significa que o produtor rural brasileiro, especialmente o pequeno e médio, não tem para quem vender sua soja legalmente produzida se não aceitar as condições impostas por esse clube privado de tradings.
Quando essas empresas compram, achatam preços ao seu bel-prazer, manipulam o mercado sem qualquer constrangimento e ainda têm a desfaçatez de se apresentarem como “defensoras da Amazônia”.
A APROSOJA estima que 85 municípios e 2,7 milhões de hectares em Mato Grosso sejam afetados pela moratória, com perdas diretas superiores a R$ 20 bilhões. As consequências são nefastas: agricultores e municípios economicamente sufocados, famílias destruídas e desenvolvimento regional estrangulado — tudo em nome de uma “sustentabilidade” que a própria lei brasileira já garante de sobra.
O Brasil já cumpre rigorosamente a legislação ambiental
O País possui o Código Florestal mais rigoroso do planeta. 80% das propriedades na Amazônia devem ser preservadas. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) permite o monitoramento por satélite de cada hectare. Temos legislação, fiscalização, tecnologia e instituições. O único produtor no mundo obrigado a manter reserva legal e áreas de preservação permanente é o brasileiro.
Por que, então, submeter-se a um “direito ambiental paralelo” criado por tradings multinacionais?
A China, maior compradora de soja do mundo, não exige moratória alguma. Mercados asiáticos não impõem tais restrições. As tradings inventaram uma regra que concentra poder de compra, elimina concorrência e permite a fixação artificial de preços.
O papel do CADE e a interferência do STF
O CADE, após anos de pressão, finalmente agiu. Em 30 de setembro de 2025, determinou que as signatárias cessassem imediatamente as práticas coordenadas, sob pena de multa diária. Identificou-se o óbvio: infração gravíssima à ordem econômica — cartel.
E o que faz o STF? Suspende tudo. Paralisa o órgão técnico competente. Congela a única decisão que restituiria ao produtor o direito de comercializar sua produção legal. A velocidade é reveladora: anos de silêncio enquanto o cartel operava; semanas para suspender quem tentou combatê-lo. A decisão do CADE estabelecia que a moratória terminaria em janeiro de 2026. Faltavam semanas para o produtor brasileiro finalmente respirar. E o STF diz: “Aguardem enquanto debatemos.”
Enquanto isso, cada dia representa milhões em prejuízos reais, preços manipulados, liberdade comercial cerceada.
Violação da separação de poderes
A decisão do STF suscita questões fundamentais sobre hierarquia normativa e separação de poderes. Ao suspender a atuação do CADE — autarquia dotada de competência constitucional para reprimir infrações à ordem econômica —, o Supremo interfere na execução de política pública antitruste, criando precedente perigoso: acordos privados blindados judicialmente contra fiscalização de órgãos reguladores competentes.
O artigo 170 da Constituição estabelece como fundamentos da ordem econômica a livre concorrência e a defesa do meio ambiente. Não há subordinação hierárquica entre esses princípios. A moratória não pode servir de escudo para práticas que violem a livre concorrência — especialmente quando já existe legislação ambiental específica (Código Florestal – Lei 12.651/2012) e instrumentos públicos de monitoramento (CAR, satélites) que cumprem a mesma função protetiva.
A inversão da segurança jurídica
A Lei 12.529/2011 confere ao CADE competência para “prevenir e reprimir” infrações contra a ordem econômica, incluindo expressamente o cartel (art. 36, §3º, I, “a”). Quando identifica indícios de práticas coordenadas entre agentes que detêm 90% do mercado comprador, o CADE não exerce discricionariedade, mas cumpre dever legal. A suspensão judicial não é “uniformização de entendimentos”, mas impedimento do exercício de função estatal essencial.
Sob a perspectiva da segurança jurídica — argumento da própria liminar —, surge o paradoxo: durante 19 anos, o acordo privado operou sem questionamento judicial, impondo restrições que extrapolavam a lei. A intervenção judicial só ocorre quando o órgão antitruste identifica a ilicitude. Protege-se a “estabilidade” de uma prática potencialmente ilegal em detrimento da aplicação imediata da lei de defesa da concorrência.
O precedente e o risco institucional
A pergunta é inevitável: por qual fundamento constitucional um acordo privado pode impor restrições mais severas que a lei federal? O precedente é gravíssimo. Admite-se que acordos setoriais privados criem obstáculos comerciais afetando milhares de produtores, sem qualquer validação legislativa ou regulatória. É normatização privada travestida de sustentabilidade, que fere a noção de Estado Democrático de Direito, onde compete ao Legislativo — e não a consórcios empresariais — estabelecer as limitações à atividade econômica.
Conclusão
A solução jurídica adequada deveria observar os seguintes requisitos: julgamento prioritário pelo Plenário do STF sobre a constitucionalidade de acordos privados que se sobreponham à legislação federal; manutenção da competência do CADE para investigar práticas anticompetitivas, independentemente da motivação alegada; e a aplicação imediata da legislação ambiental brasileira como parâmetro único, afastando critérios estabelecidos por agentes privados.
O que está em jogo transcende o tema agrário ou ambiental: trata-se da definição das normas que regem a ordem econômica brasileira — se as leis democraticamente aprovadas e fiscalizadas por autarquias especializadas, ou acordos privados celebrados por agentes dominantes e blindados pelo Judiciário.
Charlene de Ávila – Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura do escritório Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin – Advogado agrarista, especialista em Direito Tributário e Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do escritório Néri Perin Advogados Associados.




