A matéria publicada na Globo Rural na semana passada aborda as perspectivas e os desafios do agronegócio brasileiro para 2026, com foco especial na crise de endividamento rural e nas restrições de crédito que afetam o setor. O texto baseia-se em declarações do presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), durante coletiva de imprensa.
Feitas essas considerações iniciais, passemos à interpretação dos principais pontos abordados pela CNA.
A reportagem apresenta uma contradição relevante: enquanto há otimismo em relação à produção física — com previsão de superação de 350 milhões de toneladas na safra 2025/2026 —, há forte preocupação com a saúde financeira do setor. O termo “ajuste” aparece de forma recorrente, funcionando como um eufemismo para um período de aperto e reestruturação forçada.
O dado mais alarmante é a inadimplência no crédito rural com taxas livres, que atingiu 11,4% em outubro de 2025 — o maior índice desde 2011. Para dimensionar a gravidade do cenário, em janeiro de 2023 esse percentual era de apenas 0,59%. Esse salto exponencial revela uma deterioração acelerada da capacidade de pagamento dos produtores rurais.
Um ponto central da análise da CNA é que produtores capitalizados vêm recorrendo cada vez mais a recursos próprios para financiar as safras, diante da escassez e do encarecimento do crédito oficial. Paradoxalmente, a entidade trata essa “autossustentabilidade” como algo negativo para o setor, defendendo a necessidade de subsídios estatais para a expansão da produção.
A matéria também destaca um problema frequentemente ignorado: os chamados “penduricalhos” que encarecem o financiamento rural. Pequenos produtores podem pagar até 22% sobre o valor financiado em razão de taxas cartoriais e das chamadas “reciprocidades” bancárias, como a compra compulsória de seguros. Esse dado expõe uma das faces mais perversas do sistema de crédito rural.
Além disso, a reportagem apresenta dados concretos e atualizados sobre a inadimplência e inclui perspectivas técnicas que abordam tanto aspectos macroeconômicos quanto microeconômicos, como custos ocultos do financiamento. Também menciona fatores climáticos e a necessidade de ampliação do seguro rural.
Pois bem.
Quando a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) divulga que a inadimplência no crédito rural atingiu 11,4% — o pior índice desde 2011 —, não se trata apenas de números. Trata-se de milhares de produtores rurais à beira do colapso financeiro, aguardando por uma política agrícola que, na prática, inexiste.
A matéria da CNA expõe com clareza uma realidade que o produtor já sente no dia a dia: a ausência do governo federal nas questões estruturais que determinariam a sobrevivência do setor.
Enquanto a produção física deve superar 350 milhões de toneladas na safra 2025/2026 — números frequentemente utilizados em discursos políticos para exaltar o “sucesso do agronegócio” —, quem está no campo enfrenta uma verdadeira tempestade perfeita: crédito escasso e caro, inadimplência recorde, custos de produção elevados e ausência de amparo governamental efetivo.
A inadimplência multiplicou-se por 19 vezes em menos de três anos. Esse não é um problema que se resolve com meros “ajustes de mercado”. Trata-se de uma crise sistêmica que exige intervenção imediata. Onde está o programa robusto de renegociação das dívidas rurais?
A matéria menciona a necessidade de fortalecimento do seguro rural, mas não explicita a realidade enfrentada pelos produtores: no Brasil, o seguro rural é caro, burocrático, de baixa cobertura e extremamente difícil de acionar quando realmente necessário.
O Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) existe formalmente, mas, na prática, apresenta sérias limitações. A maioria das apólices cobre apenas os custos de custeio, não a renda esperada. O produtor perde a safra, recebe uma indenização que mal cobre o que foi investido e permanece sem recursos para honrar compromissos e financiar a safra seguinte.
Além disso, são recorrentes os sinistros negados, com seguradoras utilizando critérios técnicos excessivamente restritivos. Uma geada pode destruir a lavoura, mas o laudo pericial aponta suposta inadequação da técnica de plantio ou alega que o percentual de perda não atingiu o mínimo contratado. O resultado é perverso: o produtor paga um prêmio elevado e não recebe a indenização.
Soma-se a isso uma burocracia paralisante. Para acionar o seguro, o produtor precisa comunicar o sinistro em prazos exíguos, reunir documentação complexa e aguardar vistorias que podem levar semanas. Enquanto isso, a próxima safra precisa ser plantada — sem recursos, porque o seguro não pagou.
Talvez o aspecto mais revoltante exposto pela matéria da CNA seja o fato de pequenos produtores pagarem até 22% sobre o valor financiado em razão de taxas cartoriais e das chamadas “reciprocidades” bancárias.
Traduzindo essas “reciprocidades”: trata-se de venda casada pura e simples, prática tipificada como crime pelo Código de Defesa do Consumidor, mas que continua sendo aplicada sistematicamente pelos bancos no crédito rural, sem qualquer punição efetiva.
Na prática, o produtor busca um crédito rural “subsidiado” a 8% ao ano. O gerente informa que o crédito foi aprovado, desde que o produtor abra conta corrente, mantenha saldo médio mínimo, contrate seguro rural com a seguradora do próprio banco — geralmente mais caro que o praticado no mercado —, adquira seguro de vida, faça aplicação financeira de parte do valor financiado, pague taxas de abertura de crédito, registros cartoriais, avaliações de garantias e, não raro, contrate serviços de “assessoria técnica” vinculados à instituição financeira.
Ao final, aquele crédito supostamente subsidiado transforma-se em um custo efetivo de 22% ao ano. E o produtor não tem alternativa: ou aceita as condições impostas, ou fica sem financiamento.
O que fica evidente, tanto na matéria da CNA quanto na realidade vivida por quem produz no campo, é a inexistência de uma política agrícola federal consistente. Há propaganda, números de produção para discursos oficiais e slogans publicitários. Mas, quando o produtor precisa de apoio concreto, encontra portas fechadas.
Assim, quando a CNA fala em “ajustes para 2026”, o que se revela é um agronegócio brasileiro em encruzilhada: produtivamente robusto, porém financeiramente fragilizado. O termo “ajustes” encobre uma realidade muito mais dura, marcada por inadimplência recorde e severa restrição creditícia.
A reportagem cumpre seu papel informativo ao apresentar dados relevantes e dar voz à principal entidade representativa do setor, mas carece de maior profundidade analítica sobre as causas estruturais da crise e sobre alternativas que vão além do simples aumento de subsídios estatais. O leitor compreende o “o que” está acontecendo, mas recebe explicações limitadas sobre o “por quê” e sobre a real eficácia das soluções propostas para um setor que se apresenta como competitivo em escala global.
Charlene de Ávila – Advogada. Mestre em Direito. Consultora jurídica em propriedade intelectual aplicada à agricultura.
Néri Perin – Advogado agrarista, especialista em Direito Tributário e Direito Processual Civil. Diretor administrativo do escritório Néri Perin Advogados.




