Charlene de Ávila
Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura de Néri Perin Advogados Associados – Brasília-DF
Que mundo queremos para os brasileiros?
Dizem que o Brasil é o celeiro do mundo, mas, até quando?
Estamos diante de um Frankenstein jurídico com a criação da joint venture constituída pelas maiores líderes globais de sementes geneticamente modificadas, grãos, fertilizantes e agrotóxicos, e que funcionará como uma verdadeira “Gestapo” para os produtores rurais fiscalizando os carregamentos de soja entregues pelos agricultores, monitorando, reportando as vendas, operando o call center, auditando e retendo os royalties não pagos nos PODs dos, (segundo eles), “agricultores ilegais. ”
Segundo a joint venture aprovada sem restrições pelo CADE, a nova empresa irá incentivar os agricultores a realizar o pagamento de royalties devidos a cada empresa de biotecnologia participante deste pool de forma lícita e tempestiva.
Mas a pergunta que não quer calar é: quando os produtores rurais questionaram os pagamentos devidos de royalties pelo uso da tecnologia destas empresas? Um dos objetivos dos produtores rurais ao procurar o Judiciário por décadas é requerer de forma legítima que estes pagamentos de royalties sejam realizados de maneira não abusiva e real. Podemos por exemplo, lembrar o caso das patentes pipelines da RR1 que já estavam em domínio público e os produtores rurais ainda pagavam royalties por tecnologia que podia ser utilizada por todos. Isso é uma vergonha!!!
Na verdade, esta joint venture representa uma tentativa de regulação conjunta do mercado para adoção de um modelo comercial e tecnológico uniforme, entre potenciais rivais, em detrimento de modelos alternativos. É necessário ficar muito claro uma prática milenar usualmente realizada no Brasil pelos produtores rurais que está sendo vilipendiada por estas empresas globais que é a questão da “salva de sementes para uso próprio”, aliás, consagrada em costumes e em lei nacional.
Verdadeira prática anticoncorrencial que estas empresas fazem contra este costume milenar que é o salvamento de sementes para uso próprio e que, futuramente a agricultura brasileira, já refém destas multinacionais, terão preocupantes repercussões na seara da concorrência. Enfatizamos que, muito do desenvolvimento agrícola pode ser creditado à prática milenar de salvar sementes, por meio da qual um agricultor pode selecionar características favoráveis de determinadas culturas e obter variedades mais adaptadas ao clima, solo e demais características de cada região.
Salvar sementes apresenta-se como uma atividade produtiva absolutamente racional no mercado de insumos: o agricultor é seu próprio fornecedor, já que a semente salva comparece como fonte alternativa de insumo.
Atualmente existe uma cruzada da gigante da biotecnologia Monsanto contra o uso de sementes salvas pelos agricultores, utilizando-se de práticas pouco ortodoxas, ou seja, práticas agressivas de investigação, cobrança e litigância. Em primeiro lugar existe no Brasil uma legislação autorizadora que não proíbe expressamente a prática de salvar sementes para plantio próprio, aliás, muito além da legislação sempre existiu os usos e costumes imperante entre os agricultores.
Por exemplo, os acordos de adesão e/ou contratos com cláusulas pouco claras e abusivas da Monsanto proíbem o salvamento de sementes ao estipular que agricultores não podem salvar ou limpar sementes para plantio, além disso, não podem fornecer sementes Monsanto para qualquer pessoa para plantio, e/ou transferir sementes para qualquer pessoa para plantio, a menos que o produtor também esteja sob contrato com a Monsanto para produção de sementes.
Em vez disso, os agricultores são autorizados a usar semente apenas para uma “única safra comercial”. Agricultores também são proibidos de plantar ou transferir sementes a outros para “cruzamento, pesquisa ou geração de registros de dados de herbicida”. Além disso, os acordos proíbem pesquisa nas safras dos produtores “de outra natureza que para fazer comparações agronômica e conduzir testes de produtividade para o uso particular do Produtor. ”
E não seria inviável utilizarmos analogicamente para o Brasil as práticas que são utilizadas por estas gigantes globais no Estados Unidos contra os produtores rurais, por que na prática é o que vem acontecendo desde sempre:
Cenas assim estão se desenrolando em muitas áreas da América rural ultimamente à medida que a Monsanto persegue fazendeiros, cooperativas de fazendeiros, comerciantes de sementes – qualquer um que ela suspeita que tenha infringido suas patentes de sementes geneticamente modificadas. Como revelam entrevistas e pilhas de documentos judiciais, a Monsanto se apoia em um exército obscuro de investigadores privados e agentes no coração da América para causar medo no interior agrícola. Eles se dispersam em campos e cidades agrárias, onde secretamente filmam e fotografam agricultores, proprietários de lojas e cooperativas, se infiltram em reuniões comunitárias, e reúnem informação de informantes sobre atividades agrícolas. Fazendeiros dizem que alguns agentes da Monsanto fingem ser pesquisadores. Outros confrontam fazendeiros em suas terras e tenham de pressioná-los a assinar documentos dando acesso à Monsanto aos seus registros privados. Fazendeiros os chamam de “polícia das sementes” e usam palavras como “Gestapo” e “Máfia” para descrever suas táticas[1].
Vamos ver nos próximos anos com a constituição desta joint venture uma campanha de litigância sem precedentes contra os agricultores para encerrar a prática do salvamento de sementes e maximizar seus lucros. Em outras palavras, a Monsanto já domina o mercado de sementes geneticamente modificadas no Brasil. Esta realidade é tão assustadora quanto as táticas da corporação – batalhas legais implacáveis contra pequenos agricultores – ignorando usos e costumes do país e sua legislação nacional, além da sua história de décadas de contaminação tóxica.
[1]BARLETT, Donald L. STEELE, James B. Monsanto’s Harverst of Fear. Vanity Fair, mai/08. Disponível em https://www.vanityfair.com/news/2008/05/monsanto200805 .