O CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica – existe desde 1962 e sua missão é cristalina: zelar pela livre concorrência, prevenir e reprimir infrações à ordem econômica, investigar e punir práticas anticoncorrenciais. Pois bem:
A venda casada no crédito rural do Banco do Brasil não surgiu ontem. Não é novidade de 2025. Ex-funcionários do próprio banco confirmam que a prática existe há décadas. Produtores reclamam há anos nas associações, sindicatos e corredores de agências. Entidades do setor denunciam publicamente. Advogados alertam. Os indícios não estavam escondidos em cofres secretos – estavam escancarados para quem quisesse ver.
E o CADE, caros leitores?
Bom, o CADE passou décadas olhando para o lado. Fingindo que não via. Deixando que o maior operador de crédito rural do país transformasse política pública em esquema de extorsão contra o produtor rural.
Agora, finalmente, o órgão reconheceu que há indícios de venda casada no crédito rural e admitiu sua competência para investigar práticas anticoncorrenciais que prejudicam produtores há décadas. E esse fato, dizem, é histórico.
Não. Não é.
Tratar como “marco histórico” o fato de o CADE fazer o trabalho para o qual foi criado, financiado com recursos públicos e legalmente obrigado a executar não é reconhecimento de avanço institucional. É confissão constrangedora de que rebaixamos tanto o padrão de expectativa sobre nossas instituições que qualquer migalha de funcionalidade básica vira motivo de festa.
É a tragédia brasileira em sua essência mais pura: naturalizar a incompetência a ponto de comemorar quando ela temporariamente se ausenta.
É como chamar de “revolucionário” o fato de um bombeiro finalmente apagar um incêndio depois de assistir passivamente o prédio queimar por décadas. É como celebrar um policial por prender um criminoso depois de vê-lo cometer crimes diariamente sem intervir. É transformar a exceção vergonhosa em regra comemorável.
Um verdadeiro marco histórico não seria o CADE abrir inquérito. Seria o CADE conduzir uma investigação rápida, conclusiva e imparcial. Seria transformar indícios em provas sólidas, provas em condenação robusta, e a condenação em mudança estrutural real e imediata. Isso, sim, representaria uma ruptura com a tradição brasileira de investigações que começam com estardalhaço e terminam com suspiros.
Isso mostraria que finalmente temos instituições funcionais, e não apenas decorativas.
E aqui reside a tragédia que todos sabem, mas poucos têm coragem de dizer: nada disso vai acontecer.
A investigação não será rápida. Vai se arrastar por anos. Prazos serão prorrogados. Recursos protelatórios se multiplicarão. O Banco do Brasil tem o melhor time jurídico que bilhões podem comprar. Cada vírgula será questionada, cada ponto será litigado, cada decisão será recorrida.
E o tempo – esse grande aliado da impunidade brasileira – fará seu trabalho silencioso de corroer a memória, esfriar a indignação e cansar até os mais determinados.
A investigação não será conclusiva. Terminará – se terminar – em algum Termo de Compromisso de Cessação (TCC), no qual o banco “se compromete” a “aprimorar processos”, “treinar funcionários” e “adequar práticas”. Pagará uma multa simbólica – alguns milhões sobre um faturamento de bilhões. Não admitirá culpa. Não ressarcirá automaticamente as vítimas. E seguirá praticando vendas casadas, apenas com maquiagem diferente, nomes mais bonitos, documentação mais sofisticada.
Caros leitores, a investigação não será imparcial.
Não porque o CADE seja corrupto – não há necessidade dessa acusação simplista.
Mas porque a pressão será insuportável.
O Banco do Brasil mobilizará todos os seus recursos políticos. Parlamentares serão “conscientizados” sobre o risco de “travar o crédito rural”. Ministros receberão argumentos sobre “segurança jurídica”. O Banco Central sinalizará preocupação com “estabilidade financeira”.
E, gradualmente, sutilmente, a investigação será domesticada. As arestas serão aparadas. O rigor será suavizado. O escândalo será transformado em “divergência de interpretação comercial”.
Enquanto celebramos o “marco histórico”, o produtor rural continua indo ao banco buscar crédito e saindo com produtos que não pediu. Continua silenciando por medo.
Durante décadas, o produtor rural brasileiro foi tratado como alvo fácil. Refém de um sistema de crédito concentrado, sem alternativas reais, aceitou abusos porque não tinha escolha. Engoliu vendas casadas porque precisava plantar. Pagou por produtos desnecessários porque o crédito dependia disso. E silenciou porque temia retaliação, porque não sabia a quem recorrer, porque não acreditava que algo pudesse mudar.
E essa mudança não virá de inquéritos que já nasceram fadados à morosidade, à domesticação política e ao desfecho brando.
Virá – se vier – da mobilização persistente, da pressão midiática incessante, das ações judiciais que atinjam o bolso, do custo político e financeiro de manter a impunidade se tornar maior do que o custo de fazer justiça.
Podemos aplaudir, chamar de “marco histórico”, nos contentar com o gesto simbólico e assistir passivamente enquanto a investigação segue o roteiro previsível da impunidade brasileira.
O inquérito do CADE contra o Banco do Brasil não é marco histórico. É teste.
Teste para sabermos se finalmente temos instituições à altura dos desafios ou se continuamos presos na farsa regulatória que finge investigar, finge punir e finge que algo mudou.
Infelizmente, a história brasileira não autoriza otimismo.
Mas ainda podemos nos recusar a comemorar o fracasso como se fosse vitória.
Charlene de Ávila
Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em Propriedade Intelectual na Agricultura do Escritório Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin
Advogado agrarista. Especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do Escritório Néri Perin Advogados Associados.