Charlene de Ávila Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura de Neri Perin Advogados Associados – Brasília-DF
Vamos iniciar o texto por um “spoiler” afirmando que a fixação de royalties com base na oportunidade de mercado resultante da autorização concedida pelo titular das patentes de invenção constitui royalties excessivos e irrazoáveis. Mas, o que são royalties? Royalties ou regalias são os pagamentos relativos à autorização da utilização do objeto de um direito exclusivo, que faz o seu titular ou quem por ele aja, devidos por aquele que se utiliza dessa autorização.
Quando existe uma tecnologia protegida por patentes de invenção, os royalties são um pagamento contraprestacional por uma licença de uso de um direito exclusivo. Assim, a natureza jurídica dos royalties diz respeito ao caráter contraprestacional, isto é, de pagamento contraprestacional e não de caráter indenizatório. Entretanto, nos contratos firmados entre agricultores e a multinacional, existem cláusulas referentes ao “ressarcimento de investimento” para justificar o pagamento de royalties. Nada mais retórico e abusivo que esta afirmação, e por quê? Porque não se trata de um contrato de prestação de serviços encomendados às multinacionais pelos agricultores, cujo custo cabe ressarcir. Ao contrário, trata-se de uma autorização de uso de uma tecnologia protegida por direito exclusivo, no caso, patentes de invenção.
Em princípio, a fixação de royalties depende da livre vontade das partes, e seu limite efetivo resulta das forças do mercado. É muito claro que ressarcimento de investimento e royalties, seja na seara jurídica ou econômica, possui conotações e conceitos distintos. Vamos analisar um pouco mais a fundo esta afirmação: a concessão de uma patente está condicionada a certos requisitos objetivos, ou seja, novidade, atividade inventiva e aplicabilidade industrial. Não se encontra na legislação que regulamenta a propriedade intelectual o requisito “demonstração de qualquer montante de investimentos” para a concessão de patentes. Nosso saudoso mestre e doutrinador Denis Borges Barbosa nos ensinava que “a existência de um sistema de patentes é justificada pela indução de investimento. Mas em relação a cada patente específica, a existência de investimentos para a geração daquela tecnologia é de uma total e absoluta irrelevância jurídica.
O desenvolvimento de uma nova tecnologia pode resultar de uma simples inspiração momentânea, ou de anos e bilhões de reais; tais variáveis ocasionais são juridicamente irrelevantes para a concessão do privilégio de invenção. De outro lado, a fixação dos royalties, em sua expressão econômica, não sofre qualquer repercussão dos investimentos feitos pelo titular da patente. Pagam-se os royalties na razão econômica da oportunidade de mercado resultante do uso da tecnologia protegida pelo direito exclusivo. Se o investimento, muito, pouco ou nulo, não resultar numa oportunidade real e efetiva de mercado, faltará substância econômica à pretensão de haver royalties”. Assim, pelos ensinamentos do mestre, em nada irá afetar a natureza jurídica de uma patente de invenção se os rendimentos de uma patente específica são diminutos, e não retornam o investimento, ou, pelo contrário, compensam em bilhões de vezes o investimento. Pelo exposto acima, repito: o bem jurídico pretendido por quem pactua contratualmente com as multinacionais sementeiras é a obtenção de autorização de uso de uma tecnologia protegida por direito exclusivo e, portanto, não existe uma assunção comum dos riscos e custos de desenvolvimento de tecnologia entre a multinacional e os agricultores.
Note-se que para estas espécies de contrato não cabe o fundamento jurídico de cláusulas com a finalidade de restituir custos de investimento pelas patentes. É abusivo e ilegal e retórico. Infelizmente, é uma prática institucionalizada no Brasil. Em artigo anterior afirmei que a média do valor dos royalties praticada no mercado atual gira em torno do custo de PI de 6% sob o valor da venda do produto. O custo para o produtor rural para produzir, por exemplo, uma saca de algodão é de 30 dólares. Ao entregar a produção, o produtor deve declarar a presença ou não da tecnologia nos grãos entregues pagando neste interim o valor de 240 dólares por hectare. Caso o produtor declare não haver tecnologia protegida por PI, a empresa se reserva o direito de executar, direta ou indiretamente, testes nos referidos grãos visando a confirmação da ausência desta tecnologia e impingirá por força contratual o agricultor a pagar uma multa de 480 dólares por hectare.
Um evidente caso de enriquecimento ilícito, aliás, é razoável presumir que as práticas de preço e cobrança de royalties no modelo contratual da Monsanto/Bayer sejam contrárias às normas do direito de defesa da concorrência. Além disso, a transferência dessa responsabilidade ao produtor de ter que submeter compulsoriamente o produto ao teste de transgenia desenvolvido unilateralmente pela multinacional – sem qualquer aferição ou certificação quanto à sua eficácia e confiabilidade – impondo ainda aos produtores o dever de pagar pelo teste realizado, configura abuso e ilicitude. Na prática existem vários ilícitos e abusos que podemos apontar sobre o modelo contratual de cobrança adotado pela Mosanto/Bayer.
A multinacional vincula o valor devido a título de royalties à produção dos agricultores e caso haja produção superior ao “crédito” inicial estipulado pela empresa, os agricultores incorrem em multa a título de indenização. Uma ilegalidade. Vamos explicar: a licença da multinacional é para uso do objeto da patente, mediante a reprodução, no momento do plantio, do elemento transgênico patenteado. O agricultor ao pagar pela autorização de utilizar a tecnologia patenteada está manifestando e declarando por contrato um ato de reprodução incerto quanto à quantidade da lavoura e produtividade da semente adquirida, além de outros fatores naturais incontroláveis. Existe uma álea. Esses fatores são estranhos ao agricultor/licenciado, mas que tem que assumir contratualmente como condição necessária a natureza de um contrato de licença de biotecnologia. Mediante esta declaração, podemos afirmar que o fato do agricultor/licenciado obter maior colheita do que o correspondente ao pagamento antecipado, não é caso de infração de patentes. Tanto o pagamento inicial como o posterior, tem a mesma natureza jurídica, isto é, a contraprestação. Posto isto, não havendo delito, não pode o pagamento posterior ser classificado como indenizatório.
Assim, em tudo que a Monsanto/Bayer toma como base de cálculo de royalties além desse ganho de produção, ela cobra sobre o que não tem direito. Ainda que se possa argumentar que apenas fixa os royalties sobre o todo da colheita como uma forma de induzir qual seria tal ganho de produção, há uma altíssima probabilidade de que em muitas ou todas as hipóteses, ela estará fixando royalties excessivos ou irrazoáveis. Na verdade, ao cobrar royalties sobre o todo, e não sobre a base específica pertinente ao ganho de produtividade, a Monsanto está atrelando como base de cálculo o produto patenteado (o elemento genético) a um outro produto não patenteado (o restante da semente, em domínio público).
Certo é que, fisicamente, os dois elementos são indissolúveis, mas ao extrapolar sua base de cálculo para a parte em domínio público, a Monsanto está extraindo valor de uma operação de venda casada. Note-se que, as práticas contratuais da multinacional, como descritas, são suscetíveis de censura quanto à excessividade e irrazoabilidade de preços. Por uma análise jurídica é possível concluir que a multinacional mantém sua sistemática e forma de cobrança abusiva e ilegal. E onde ocorre a ilicitude do modelo contratual da multinacional? É a cobrança de royalties sobre base não patenteada. Com efeito, se o produto patenteado pela multinacional não é o produto da colheita, mas tão simplesmente um aparelho que atua no processo industrial do plantio, cobrar royalties sobre a colheita é cobrar sobre elemento não patenteado, isto é, utilizar como base de cálculo o objeto da colheita é impróprio, pois cobra-se o que está em domínio público. E isso será ilegal na proporção em que resultar – desse cálculo sobre bases impróprias – royalties excessivos, irrazoáveis e indevidos.