Vamos falar um pouco de “pirataria” de sementes?
Segundo alguns especialistas, “o mercado agrícola brasileiro enfrenta uma batalha silenciosa contra a pirataria de sementes, uma prática que compromete o desenvolvimento tecnológico e coloca em risco a produtividade dos agricultores”.
Vamos interpretar um pouco está frase:
Os agricultores, ao longo da história, têm sido os guardiões e inovadores das sementes, compartilhando, selecionando e melhorando variedades ao longo de gerações – prática comunitária que foi e é fundamental para o desenvolvimento da agricultura.
No entanto, existe uma questão ética, social e econômica muito importante sobre a “pirataria de sementes”.
Primeiro:
Vamos esclarecer que as chamadas “sementes ilegais” são, na verdade, as sementes não formais ou tradicionais que os agricultores cultivam e reproduzem ao longo dos anos.
A deslegitimação das empresas sementeiras quanto às sementes informais é uma estratégia para criar medo e desconfiança em relação a esses insumos, onde se sugere que podem causar prejuízos nas lavouras. Portanto, deslegitima o conhecimento e a prática agrícola dos pequenos produtores, mantendo-os em constante dependência.
Quando falamos sobre impacto na produtividade, é importante esclarecer que as grandes empresas promovem a ideia de que sementes não certificadas ou tradicionais são menos produtivas, mas isso ignora o fato de que muitas variedades locais são adaptadas às condições específicas de cada região e podem ser muito produtivas se bem manejadas.
Devemos ter em mente que a capacidade dos agricultores de preservar suas tradições agrícolas e cultivar variedades adaptadas ao seu ambiente local é fundamental para a segurança alimentar e para a cultura agrícola; e quando essa capacidade é restringida por leis e práticas comerciais exacerbadas, isso levanta sérias preocupações sobre justiça social e direitos humanos.
Assim, com a chegada das grandes empresas de sementes, surgiu a narrativa de que apenas as sementes certificadas, produzidas em larga escala e distribuídas comercialmente, são confiáveis.
Embora garantias de qualidade sejam importantes, essa abordagem muitas vezes desvaloriza o conhecimento tradicional e a autonomia dos agricultores. As sementes tradicionais têm um papel crucial na preservação da biodiversidade e na adaptação a diferentes condições ambientais.
Tirar esse direito dos agricultores pode levar à perda de variedades locais e à dependência de poucas fontes para o suprimento de sementes, afetando a segurança alimentar e a soberania dos produtores.
Cremos que a penalização severa para os agricultores é endêmica, ou seja, uma aplicação excessiva da lei que não leva em consideração as realidades enfrentadas pelos agricultores, (especialmente os pequenos agricultores que não têm acesso fácil a informações sobre propriedade intelectual e podem não estar cientes das implicações legais de usar sementes que não estão registradas).
Esse fato pode gerar um cenário onde os agricultores se tornam alvos fáceis para ações judiciais, mesmo quando suas intenções não são maliciosas.
A questão das multas exorbitantes que podem chegar até 250% do valor do produto, realmente suscita preocupações sobre a equidade e a justiça no tratamento dos agricultores, além de reforçar essa dependência às empresas sementeiras.
Segundo:
Essa argumentação de proteger os produtores rurais contra sementes adulteradas ou pirateadas pode ser vista como uma narrativa tendenciosa, pois muitas vezes serve para proteger os próprios interesses das próprias empresas.
Ao enfatizar os riscos de sementes não certificadas, as grandes corporações promovem a dependência de seus produtos, justificando a cobrança de royalties e controle sobre a produção de sementes.
Enquanto argumentam estar protegendo a agricultura, podem estar, na verdade, protegendo seu próprio modelo de negócios, limitando a autonomia dos agricultores e a diversidade de variedades de sementes disponíveis.
Assim, o discurso de proteção pode ser uma maneira de legitimar sua presença no mercado e manter os agricultores em uma posição de dependência, como de fato, os mantem, uma vez que os agricultores muitas vezes ficam obrigados a comprar novas sementes a cada safra, em vez de poderem guardar e replantar suas próprias sementes.
Além disso, o direito dos agricultores de cultivar e manipular suas próprias sementes é fundamental para a segurança alimentar e para a preservação da diversidade agrícola.
Historicamente, os agricultores sempre selecionaram e melhoraram suas sementes ao longo das gerações. Restringir esse direito pode levar à perda de variedades locais adaptadas às condições específicas de cada região, o que é vital para a resiliência das comunidades agrícolas.
Muitas organizações e movimentos defendem uma abordagem mais equilibrada que permita aos agricultores o uso de sementes locais e tradicionais sem medo de represálias legais.
As empresas sementeiras afirmam que “suas sementes” são essenciais para aumentar a produtividade e garantir a segurança alimentar. No entanto, essa “inovação” muitas vezes vem com custos elevados e uma dependência contínua por parte dos agricultores.
Frequentemente minimizam o valor das práticas agrícolas tradicionais e do conhecimento dos agricultores locais, apresentando-se como as únicas detentoras da “ciência” necessária para cultivar.
Isso não só subestima o saber acumulado ao longo de gerações, mas também deslegitima as formas alternativas de cultivo que são mais adequadas a contextos locais.
Ao forçar os agricultores a comprar sementes todos os anos, as indústrias criam um ciclo de dívida e dependência que dificulta a sustentabilidade financeira dos pequenos produtores.
A imposição de contratos rígidos que proíbem o armazenamento e replantio das sementes leva à perda da autonomia dos agricultores sobre suas próprias práticas agrícolas.
Esse é um tema realmente muito delicado e complexo. A questão da pirataria de sementes e a dependência dos agricultores em relação às grandes indústrias sementeiras levantam preocupações sérias sobre a soberania alimentar, os direitos dos agricultores e a biodiversidade.
Se os agricultores tivessem a liberdade de desenvolver e cultivar suas próprias sementes, teriam mais controle sobre suas colheitas e poderiam escolher variedades que atendem melhor às suas necessidades e ao seu ambiente. Isso não só promoveria a autossuficiência, mas também incentivaria a biodiversidade agrícola, que é crucial para a resiliência das lavouras.
É fundamental questionar essa lógica e buscar alternativas que valorizem o conhecimento tradicional dos agricultores e promovam práticas agrícolas sustentáveis e reconhecer verdadeiramente os direitos dos agricultores.
Charlene de Ávila. Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura de Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin. Advogado Agrarista especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo da Neri Perin Advogados Associados.