Ao conversar com o culto Jornalista Vinicius Tavares, ouvi que o mesmo estaria lançando novo livro sobre a história da soja no Brasil. Que se dará na FENASOJA, na cidade de Santa Rosa (RS). Exatamente em homenagem ao introdutor desta variedade de cultura no Estado Gaúcho, um Pároco local chamado Albert Ernest Heinrich Lehenbauser. Rememorei a história e percebi o quanto importante é ter liberdade para produzir sua própria semente e poder dela livremente dispor.
A história vivida nos campos gaúchos mostra o cultivo e a distribuição de sementes entre agricultores, a propiciar o desenvolvimento desta cultura em todo País. Na época não havia patentes diretas ou indiretas sobre a soja e, o Brasil, por conta da liberdade e da cooperação, veio a ser o maior produtor de soja do Planeta.
O desenvolvimento das comunidades envolvidas nesta atividade rurícola é notório. E invejável. Regiões antes paupérrimas passaram a exibir IDHS desejáveis. Escolas, hospitais, indústrias, comércio e serviços, convergem rumo à excelência. Todos ganham com atividade agropecuária, é fato.
Mas o que motiva estas linhas despretensiosas é o fato de algumas pretensas associações de representantes dos agricultores ter subscrito, à revelia dos interesses dos seus associados, projeto de mudança da legislação federal, para validar patenteamento direto e indireto da soja e de todas as demais culturas. Permitindo que um dos elementos mais importantes da natureza, passe à propriedade e ao controle de empresas transnacionais.
Desde o tratado de Roma, da FAO, de 2001[1], há uma nítida orientação dos países para praticar a liberdade da produção das sementes, sua comercialização e trocas. Sabe-se que tal é necessário para garantir não apenas a agrobiodiversidade, como para melhorar resistências em campo e aumentar produtividade. Essa liberdade pode ser visitada e compreendida nas legislações modernas, como a da Índia.
A União Europeia está propondo modificações para o caminho da liberdade, da garantia alimentar e da própria soberania. Todos os países subscritores do Tratado da FAO se comprometeram formalmente a assim agir (art. 9º). Mas o Brasil, incompreensivelmente, está pretendendo navegar em sentido contrário.
A falta de renda já é problema sério no campo. Os débitos estão sendo estocados, estamos realmente próximos a se exigir uma nova Securitização aos moldes da feita na Lei 9.138/95. As sementes representam um valor considerado e importante na atividade produtiva. Nelas, o que mais encarece, não é o trabalho dos sementeiros, é a propriedade intelectual nelas exigidas. Pasmem, por uma saca de sementes de algodão, é cobrado do agricultor, só de royalties para as empresas transacionais, US$ 240. Parece dado equivocado, mas não é! Esses valores fazem falta no bolso do rurícola.
Vemos perplexos que as próprias entidades que representam seus agricultores estão empenhadas em garantir que as patentes tolham a liberdade da produção de sementes, para que só possam ser cultivadas com contratos de licenciamentos, imorais e prejudiciais. Claro que o discurso é sempre preparado: “estamos garantindo novas tecnologias”. De fato, isso não garante. Falsos especialistas estão sempre polindo discursos, mas enganando e servindo aos interesses das empresas de biotecnologia. A liberdade no campo é que produz melhores rendimentos e produtividade. Vejam o exemplo do pároco de Santa Rosa.
Porque não dizer que os melhores cultivares que plantamos na atualidade tem ou tiveram origem na Argentina – onde não se permite a incidência de patentes –, os melhores germoplasmas vêm de onde a liberdade é praticada. E antes que nos acusem, não somos contra melhoramentos genéticos. Ao contrário, somos favoráveis. Queremos que os desenvolvedores-obtentores e sementeiros sejam bem remunerados. Por isso, o Congresso brasileiro aprovou a Lei de Proteção dos Cultivares n. 9.456/97, que garante retribuição por propriedade intelectual de forma exclusiva (art. 2º).
Entendemos que a atividade sementeira seria mais bem remunerada se não tivesse que estreitar seus lucros para garantir o exagerado lucro das empresas de biotecnologia. Assim como os agricultores pagariam menos e poderiam salvar suas próprias sementes. O custo mais alto normalmente é repassado a nós consumidores. Todos perdemos. Só as transacionais ganham.
As patentes escravizam. A importância de propiciar liberdade aos agricultores para produzir suas sementes salta aos olhos. Recentemente, na safra de 23-24, somente o estado do Mato Grosso houve replantio de mais de 1.5 milhão de hectares. Sabemos que as sementeiras não trabalham com estoque de sementes, normalmente produzem até menos da projeção de venda, para evitar prejuízos, vale dizer, os hectares replantados foram com sementes de péssima qualidade, os prejuízos verificados nas colheitas estão sendo tristemente divulgados. Mas era esperado. Se lhes fosse permitido fazer suas próprias sementes, até para a eventualidade de replantio, não perderiam tempo e dinheiro tendo que buscar no mercado sementes de pouca qualidade e de alto custo.
Se queremos garantir eficiência para esta atividade primária e especial, devemos remunerar adequadamente sementeiros e agricultores, assegurar alimentos mais baratos aos consumidores. Teremos que avançar para o caminho da liberdade. Sentido oposto ao dos patenteamentos diretos ou indiretos. Devemos cumprir o Tratado da FAO a que nos obrigamos. Por fim, o mundo caminha no sentido da liberdade, optando por privilegiar os interesses das suas populações, donde a produção de alimentos é necessária e essencial para garantir a sobrevivência humana e animal, de uma forma menos custosa, segura e racional.
[1] Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura (instrumento internacional de cumprimento obrigatório), aprovado na cidade de Roma em 3 de novembro de 2001, assinado pelo Brasil em 10 de junho de 2002 e promulgado pelo Decreto nº 6.476, de 5 de junho de 2008, reconheceu o direito do Agricultor de produzir sua própria semente sem condicionantes.
“preâmbulo do tratado internacional:
As contribuições passadas, presentes e futuras dos agricultores em todas as regiões do mundo – particularmente nos centos de origem e de diversidade de cultivos – para a conservação, melhoramento e na disponibilidade desses recursos constituem a base dos direitos do agricultor.
Os direitos reconhecidos neste Tratado de guardar, usar, trocar e vender sementes e outros materiais de propagação conservados pelo agricultor, e de participar da tomada de decisões sobre a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura, são fundamentais para a aplicação dos direitos do agricultor, bem como para sua promoção tanto nacional quanto internacionalmente.
Parte III – Direitos dos agricultores:
Artigo 9º – Direitos dos agricultores:
9.1 As Partes Contratantes reconhecem a enorme contribuição que as comunidades locais e indígenas e os agricultores de todas as regiões do mundo, particularmente dos centros de origem e de diversidade de cultivos, têm dado e continuarão a dar para a conservação e para o desenvolvimento dos recursos fitogenéticos que constituem a base da produção alimenta e agrícola em todo mundo.
9.2 As Partes Contratantes acordam que a responsabilidade de implementar os direitos dos agricultores, no que diz respeito aos recursos filogenéticos para a alimentação e a agricultura, é dos governos nacionais. De acordo com suas necessidades e prioridades, cada Parte Contratante deve, conforme o caso e sujeito a sua legislação nacional, tomar medidas para proteger e promover os direitos dos agricultores …
9.3 Nada no presente artigo será interpretado no sentido de limitar qualquer direito que os agricultores tenham de conservar, utilizar, trocar e vender sementes ou material de propagação conservados nas propriedades, conforme o caso e sujeito às leis nacionais”
Néri Perin
Advogado