Setor tem desempenho excepcional e leva economia a crescer 1,9%, acima do esperado
A força da agropecuária para a economia do país neste início de ano superou as expectativas mais otimistas, sustentou um crescimento além do esperado da atividade no primeiro trimestre e detonou uma onda de revisões para além de 2%nas projeções de Produto Interno Bruto (PIB) para 2023. Componentes da demanda, como o consumo das famílias e os investimentos, por outro lado, contam uma história de menos ímpeto, destacam economistas.
É possível, segundo eles, que parte da força do agro respingue no segundo trimestre, ao mesmo tempo em que os serviços também podem sustentar alguma resiliência acima do esperado. Isso não muda a perspectiva de que a atividade deve desacelerar nos próximos trimestres em relação ao início do ano, refletindo, entre outras coisas, os juros elevados.
De janeiro a março, o PIB do Brasil cresceu 1,9% em relação aos três últimos meses de 2022, na série com ajuste sazonal, divulgou ontem o IBGE. O resultado ficou bem acima da expectativa mediana de 72 consultorias e instituições financeiras ouvidas pelo Valor, de 1,3%. Foi também o melhor desempenho desde o crescimento de3,4% no quarto trimestre de 2020, quando a atividade se recompunha do tombo inicial da pandemia. Em relação ao primeiro trimestre de 2022, a alta foi de 4%, ante uma mediana de 3%.
O crescimento de 1,9% foi ainda o “mais forte dos últimos 15 anos sem contar as recuperações da pandemia e da crise financeira global”, nota a Capital Economics.
Em uma estimativa preliminar, o economista Felipe Kotinda, do Santander, estima que a economia brasileira está, atualmente, cerca de 3,2% acima do seu potencial.
Destaque do agro pode esconder cautela com outros setores”
— David Beker
No primeiro trimestre, o PIB renovou o patamar recorde da série, iniciada em 1996, e está 6,4% acima do nível pré-covid – no quarto trimestre de 2022, estava 4,4% acima. A indústria é a única atividade, pelo lado da oferta, que não está no seu maior patamar da série.
Houve revisões na série do IBGE. A queda do PIB geral do quarto trimestre de 2022, por exemplo, melhorou de 0,2% para 0,1%.
Com o resultado do primeiro trimestre, a “herança estatística” para o PIB em 2023ficou em 2,4% – ou seja, se a economia ficar estagnada nos próximos trimestres, o ano ainda encerraria com alta de 2,4% da atividade. Diante disso economistas elevaram suas projeções de PIB em 2023 para um intervalo ao redor de 2% a 2,5%, chegando até a 2,6% (ver na página A7).
No primeiro trimestre, o comportamento do PIB se descolou do desempenho dos serviços (0,6%) e do consumo das famílias (0,2%), setores que, tradicionalmente, ele costuma acompanhar por serem os com maior participação na economia pelo lado da oferta e da demanda, respectivamente.
O avanço do PIB colou no desempenho da agropecuária. Com peso de menos 10% na economia, o setor cresceu 21,6% no primeiro trimestre de 2023 em relação ao quarto trimestre de 2022, mais que o dobro do consenso dos analistas, de 10,3%. Foi o maior avanço entre trimestres seguidos para o segmento desde o crescimento de 23,4% do quarto trimestre de 1996. Essa foi também apenas a quinta vez na série que a agropecuária cresceu dois dígitos nessa comparação.
O agro foi impulsionado pelo crescimento da lavoura e da produtividade de culturas que possuem safra relevante no primeiro trimestre, em especial a soja, aponta relatório da LCA Consultores. Segundo Rebeca Palis, coordenadora de Contas Nacionais do IBGE, a soja respondeu por cerca de 70% da lavoura do trimestre.
Parte desse desempenho da agropecuária reflete também uma reversão do choque climático desfavorável que afetou a região Sul em 2022 e que levou o setor no PIB a recuar 1,7% no ano passado, lembra a LCA.
Considerando o PIB em termos de valor adicionado a preços básicos (que não leva em conta os impostos sobre produtos líquidos de subsídios), a agropecuária pesa pouco menos de 8% na economia, mas foi responsável por cerca de 1,5 ponto percentual da alta dessazonalizada de 1,9% do PIB total, calcula a consultoria.
E esses são apenas seus efeitos diretos. O agronegócio – que inclui partes da indústria e dos serviços – responde, atualmente, por quase 25% do PIB, segundo estimativa do CEPEA/Esalq destacada pela LCA. É provável, diz a consultoria, que o desempenho tenha gerado “transbordamentos” para outros segmentos, como o de transportes – que, inclusive, subiu 1,2% e contribuiu para puxar os serviços nos três primeiros meses do ano.
A força surpreendente da agropecuária também ajuda a explicar, ao mesmo tempo, o crescimento de 23,7% (R$ 59,8 bilhões) dos estoques ante o primeiro trimestre de2022 – contribuindo positivamente, pelo lado da demanda, para o PIB do período – e a queda de 0,4% das exportações. “Grande parte da safra colhida agora ainda não foi para exportação e foi parar no estoque”, explica Palis.
Mesmo com a exportação caindo, o setor externo também deu uma contribuição positiva para o PIB de janeiro a março porque as importações recuaram muito mais (7,1%). Já a absorção doméstica – soma do consumo, dos investimentos e dos gastos do governo – teve a primeira queda desde o segundo trimestre de 2021, com consumo e investimentos em tendência de baixa pelo quarto trimestre consecutivo, notam Cassiana Fernandez e Vinicius Moreira, economistas do J.P. Morgan.
Soma-se ao desempenho do agro a resiliência dos serviços, que cresceram 0,6%, acima da expectativa mediana de 0,3%. Registraram queda apenas “outros serviços”- que incluem atividades presenciais, como hotelaria – e serviços de informação e comunicação, categorias que cresceram com força após o choque da pandemia.
Ainda pelo lado da oferta, a indústria recuou 0,1% no primeiro trimestre do ano, em relação aos três meses imediatamente anteriores. Para o IBGE, o resultado representa virtual estabilidade, e ele também foi um pouco melhor do que a mediana que o Valor captou, de queda de 0,3%.
O destaque dado à agricultura, porém, pode esconder o fato de que os demais setores sugerem cautela nos próximos meses, alerta David Beker, chefe de economia para Brasil do Bank of America (BofA). Ele cita a queda da taxa de investimentos, para 17,7% do PIB no primeiro trimestre, e a alta da taxa de poupança, para 18,1% do PIB. “Esses números ligam uma luz amarela adiante.”
A Capital Economics concorda: o crescimento relativamente concentrado do PIB no primeiro trimestre indica “que a economia não está tão forte quanto o impressionante aumento de 1,9% poderia sugerir”.
Na visão de Palis, do IBGE, os juros altos e a menor oferta de crédito contribuíram para inibir a indústria, a construção e, pelo lado da demanda, a formação bruta de capital fixo (FBCF), medida do que se investe em máquinas, construção e pesquisa no PIB. A FBCF caiu 3,4% no primeiro trimestre.
Também pela ótica da demanda, o consumo das famílias avançou 0,2% em relação ao quarto trimestre de 2022, abaixo da mediana do Valor, de 0,7%. “O agro foi muito bem, a indústria não foi tão ruim como esperávamos e serviços foi muito bem, obrigado”, diz Marco Caruso, economista-chefe do Banco Original. “Mas, quando olho para a demanda, o consumo das famílias cresceu só 0,2%, apesar da massa real de salários estar crescendo e a taxa de desemprego estar caindo. Para onde está indo esse dinheiro?”, questiona.
Ele se diz “matematicamente obrigado” a rever para cima sua projeção de PIB no ano (de 0,9% para 1,7%), mas aponta que a demanda fraca e o volume de investimentos sugerem algum tipo de moderação. “O Brasil está passando por um choque positivo de oferta: há mais produção, menos inflação, só que a parte vinda do campo não é permanente.”
Uma “perna” do desempenho “notável” da agropecuária pode aparecer também no segundo trimestre, avalia Roberto Secemski, economista-chefe para Brasil do Barclay. Além disso, alguns economistas apontam que, apesar do claro esgotamento do processo de retomada da mobilidade social, os serviços ainda podem dar uma contribuição positiva ao PIB, sustentados, por exemplo, por um desemprego historicamente baixo e por alguns estímulos fiscais adicionais, como o reajuste do salário mínimo desde 1º de maio.
A contribuição dos estoques também pode diminuir no segundo trimestre, mas isso não é necessariamente negativo para o PIB. “A variação de estoque pode ir para exportação e, aí, continua contando positivamente. Pelos dados de abril, já vimos que aumentou bem a exportação de soja”, afirma Palis.
O menor impulso da reabertura econômica, as condições monetárias e financeiras apertadas, o elevado endividamento das famílias, entre outros fatores, no entanto, “devem gerar ventos contrários à atividade após o primeiro trimestre”, pondera Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do Goldman Sachs.
Pode parecer “paradoxal”, como diz a MB Associados, mas o PIB mais forte não necessariamente muda a perspectiva de queda da taxa de juros a partir do segundo semestre, já que a supersafra ajuda na queda dos preços dos alimentos e a atividade de serviços não está em processo de aceleração. “O PIB cresceu onde precisava crescer para ajudar na dinâmica inflacionária”, diz a consultoria.
Por Alessandra Saraiva, Anaïs Fernandes, Lucianne Carneiro, Marcelo Osakabe, Marsílea Gombata, MartaWatanabe, Rafael Rosas e Rafael Vazquez — De São Paulo e do Rio