Desde o início do ano passado, venho alertando o mercado brasileiro sobre o risco de escassez de Glifosato e de outras moléculas importantes, como o Diquat.
Fui taxado de diferentes adjetivos, inclusive de terrorista por haver emitido vários alertas nos meses que antecederam o problema. Depois, proliferaram analistas de mercado tecendo comentários sobre um fato consumado. Como diz um grande amigo: “Depois que a Onça está morta, todo mundo é Macho para tirar foto montado em cima dela”.
Importante salientar que algumas empresas, tanto nacionais quanto multinacionais, não agiram corretamente com os produtores rurais, cooperativas e revendedores no ano passado. Não se pode tapar o sol com a peneira. No caso do glifosato, aconteceram manifestações na imprensa para descartar problemas de abastecimento. Algumas multinacionais sustentaram esta posição até os últimos dias antes do início do plantio.
Na maioria dos comunicados que se viu pelo mercado foram mencionadas as restrições ambientais implementadas pelo Governo chinês e os gargalos logísticos causados pela pandemia como responsáveis pela falta de insumos essenciais. Os preços de vários produtos subiram significativamente. Testemunhei propostas indecorosas, como a apresentada por uma grande empresa que cancelou um pedido pago antecipadamente e que ainda teve a cara de pau de dizer ao cliente que se ele estivesse disposto a pagar o “preço de mercado” daquele momento, o produto seria entregue.
A bem da verdade, é preciso que seja dito e repetido que problemas de fornecimento dessa magnitude, quando se depende basicamente de importações, são dados a conhecer com pelo menos 90 a 120 dias de antecedência. Se a empresa porventura já tivesse uma programação contratada, então certamente que teria o conhecimento efetivo da situação alguns meses antes. Ao terem omitido o problema, do qual tinham a ciência prévia, tornaram-se irremediavelmente responsáveis pelos danos causados aos agricultores em decorrência da falta de entrega dos insumos. Tratou-se, indiscutivelmente, de uma conduta dolosa que impediu que milhares de agricultores buscassem medidas alternativas para reduzir os prejuízos.
Notificações dando conta de fatos “supervenientes”, expedidas há poucos dias da data limite para a chegada dos insumos no campo, não são aceitáveis nesse caso. Demonstram tão somente que as empresas que amarraram o produtor para que este não comprasse de outro fornecedor, no afã de que se pudesse resolver o problema por milagre ou simplesmente que tal situação criasse a oportunidade para empurrar o insumo a preços majorados.
I – Da recente declaração da Bayer
Pessoalmente, considero o comunicado da Bayer vergonhoso. Seria risível, não fossem graves as repercussões para a agricultura mundial. É inacreditável que uma corporação dessa envergadura possa declarar que falhas mecânicas são motivos de “Força Maior” e que por isso os seus compromissos comerciais poderão não ser cumpridos.
Trata-se de uma manifestação que pode ser interpretada como uma antecipação de DEFAULT, justamente há poucas semanas do início do plantio nos Estados Unidos.
As implicações disso são potencialmente grandes, pois a falta de glifosato poderá trazer perdas bilionárias para milhares de agricultores a partir da diminuição dos resultados produtivos e agravar ainda mais a pressão inflacionária sobre os alimentos ao redor do mundo.
Me parece que a empresa assumiu o risco de enfrentar a uma onda de processos judiciais por parte de produtores rurais, cooperativas, revendas e tradings nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, a falta de glifosato e uma nova disparada dos preços poderá inviabilizar o plantio em muitas regiões.
Esta situação foi corretamente posicionada pelo Senhor Fernando Cadore, Presidente da Aprosoja-MT, quando questionou se a Bayer estaria inaugurando um novo conceito de “força maior”, o qual poderia ser igualmente alegado pelos produtores rurais para não cumprir contratos no caso de perdas climáticas ou problemas mecânicos.
Mesmo que a ocorrência do problema esteja localizada nos Estados Unidos, a previsão de uma correção em até 90 dias traz uma série de incertezas no que diz respeito a garantia de fornecimento para o mercado brasileiro.
O suposto problema pode ser bem mais grave do que aparenta e pouco adiantam declarações no gerúndio de que “estamos fazendo de tudo para corrigir o problema”.
Ao considerarmos a previsão de retomada da produção dentro de um horizonte de 90 dias, significa que a normalidade será alcançada, na melhor das hipóteses, apenas em meados do mês de Maio/2022.
Se levarmos em conta a nossa dependência absoluta do glifosato importado e a participação de mercado expressiva da Bayer no fornecimento, podemos estimar com bastante segurança que os problemas de abastecimento verificados no ano passado se repetirão de forma ainda mais grave. Com base nesse cenário, torna-se desnecessário comentar qualquer coisa sobre a perspectiva dos preços.
Há que se destacar que a janela de aplicação do herbicida na lavoura não pode esperar a normalização do fornecimento. A chegada do produto depois da época, como se verificou na última safra, não serve para absolutamente nada.
II – Eventuais motivos não declarados
Do meu ponto de vista, a Bayer possui alguns desafios urgentes a resolver. É sabido que muitos acionistas da empresa discordaram da decisão de aquisição da Monsanto. Esta situação foi amplamente divulgada pela imprensa internacional.
Não fosse suficiente, a Bayer teve que oferecer um acordo superior a USD 10 bilhões para interromper uma demanda judicial coletiva (class action) que era movida contra a Monsanto, sob a alegação de que o uso continuado do Roundup teria sido o causador de inúmeros casos confirmados de câncer nos Estados Unidos.
Não vou entrar no mérito se havia ou não culpabilidade nesse caso, mas o fato é que um desembolso dessa monta não se faz atoa, afeta brutalmente os resultados de qualquer corporação e, como não poderia deixar de ser, desagrada a muitos acionistas.
A esta altura não é incabível pensar na existência de uma pressão muito grande sobre os diretores da Bayer para que recuperem o quanto antes, não só o investimento na aquisição da Monsanto que foi comprada por um valor superior a 13x o EBITDA anual, mas principalmente pelo valor extraordinário que foi comprometido com a indenização judicial nos Estados Unidos. Lembro de ter lido nas notas explicativas das demonstrações financeiras da empresa que os seus advogados consideravam improvável que esta demanda judicial lhes resultasse desfavorável.
Realmente, não se trata de um valor pequeno, ou troco de pinga como se diz. O horizonte para o retorno deste investimento somado ao gasto bilionário para conter o processo judicial parece estar cada vez mais longínquo.
Particularmente, me parece que a empresa poderia estar muito ansiosa por introduzir a tecnologia Xtend. Isto porque as sementes Intacta deverão ter as suas patentes expiradas em pouco tempo. Os royalties são uma das fontes mais importantes de receita para a Bayer no segmento agrícola, sendo cobrável apenas enquanto estiver coberto pelo período de vigência da patente.
A tecnologia Xtend que é patenteada, traz a insidiosa molécula Dicamba inserida no DNA das sementes de soja. Importante destacar que essa tecnologia vem causando fortes reclamações dos agricultores nos EUA por conta dos problemas de volatilidade e de deriva já amplamente verificados. Por aqui, a inovação já ganhou até o apelido de “Guerra entre Vizinhos” e a sua implementação encontra muita resistência por parte da APROSOJA.
Alguém poderá questionar o que isso teria a ver com o problema atual do glifosato?
Imaginemos, então, que uma redução abrupta no volume de produção de glifosato motivada por um evento “Força Maior”, proporcionaria excelentes condições para que a Bayer pudesse impor a sua tecnologia como substituta ou mesmo mitigadora da dependência do glifosato. A lógica por trás desse entendimento seria a criação de um problema grave para os agricultores, popularmente chamado de “bode na sala”, para que na sequência se apresentasse uma solução técnica “definitiva” baseada na adoção da tecnologia Xtend, a qual, além de apresentar preços bem mais altos, contar com a blindagem patentária que garante a obtenção de bilhões de dólares em royalties por vários anos, também impõem aos produtores em geral a obediência a um contrato absolutamente leonino.
Quem acompanhou de forma analítica a condução agressiva do marketing das empresas farmacêuticas no tocante às vacinas do Covid, entenderá claramente a que me referi no cenário traçado acima.
Uma escassez artificial de glifosato poderia beneficiar incrivelmente a Bayer, ocasionando uma elevação significativa nos preços internacionais. Uma situação assim, seria calorosamente festejada pelos acionistas e alegraria a executivos que justificariam o recebimento de bônus milionários.
III – Nova tarifa incidente sobre o glifosato importado nos EUA
Este fato pode estar ou não associado a uma eventual decisão de corte na produção.
O anúncio feito pelo US Trade Representatives (departamento de comércio exterior nos EUA) de ampliar a incidência do imposto de importação sobre o glifosato técnico chinês, passando dos atuais 3,7% para 25% sobre o valor CIF, foi revogado.
Não obstante, é possível vislumbrar que esta medida significaria um verdadeiro presente para a Bayer, a exemplo do que vigorou por anos no Brasil, de forma vergonhosa, com a tarifa antidumping contra o glifosato importado da China. Diga-se de passagem, uma concessão para lá de generosa do Governo Lula que favoreceu grotescamente a Monsanto, que na época era defendida energicamente pelo ex-governador Jacques Wagner do PT, sob o argumento de que se tratava de uma medida necessária para a proteção dos empregos da fábrica localizada na Bahia.
Não é preciso ser um gênio para pensar que a combinação de uma barreira tarifária que impede o avanço da concorrência, somada a uma melhoria significativa das margens operacionais, além de aumentar ainda mais a participação de mercado da empresa, geraria uma posição extremamente confortável do ponto de vista comercial.
Realmente, me parece que tal conjuntura seria, verdadeiramente, o paraíso na terra para qualquer gestor, ainda numa empresa que possui longa história de atuação dominante a nível global em diversos setores.
IV – O futuro da produção agrícola
Acredito que o mundo está trilhando caminhos obscuros e perigosos, quando se analisa o domínio quase que absolutista de algumas grandes empresas e, principalmente, o alinhamento que possuem com a famigerada Agenda 2030.
Felizmente, a cada dia que passa mais e mais pessoas estão se conscientizando. Mesmo em desvantagem, estou convencido de que haverão de não se entregar passivamente a esta “Nova Ordem” como pretendem Governos e Corporações.
Referente ao assunto do artigo, acredito que o problema aqui abordado traz uma enorme oportunidade para que se construam reflexões acerca do que somos e o que queremos para o futuro. Tais definições são fundamentais para que se promovam as mudanças necessárias no ambiente regulatório, de forma a permitir a redução da dependência das grandes corporações, principalmente daquelas que possuem uma posição de amplo domínio do mercado.
Há anos que temos insistido junto a legisladores e lideranças da Agricultura sobre a necessidade dos produtores rurais, cooperativas e/ou revendas terem a liberdade de transacionar com fornecedores estrangeiros, ou em outras palavras, de efetuarem importações diretas cumprindo com todas as obrigações ambientais correspondentes.
A legitimidade desse pleito é indiscutível e trará maior transparência ao mercado, possibilitando que se rompa a cartelização vigente. Somente através da desintermediação do processo comercial é que os agricultores conseguirão acessar a novos fornecedores e reduzir o custo de produção.
Finalmente, acredito muito na união dos produtores rurais, por mais desunidos que ainda sejam. Há que se discutir seriamente e com sentido ético de urgência a retomada do desenvolvimento de variedades convencionais e/ou de tecnologias que já não estejam cobertas por patentes.
Somente dessa forma é que poderemos reduzir a influência nefasta de algumas megacorporações que deveriam ter sido extintas há muito tempo em função da participação indissociável em crimes hediondos contra a humanidade.
Esta memória jamais será apagada e muito menos distorcida por estratégias de marketing ou pelo gerundismo de comunicados inconsistentes.
Eduardo Lima Porto é diretor da LucrodoAgro