A agricultura brasileira produz alimentos suficientes para abastecer toda a população nacional, sustenta economicamente milhões de pessoas e desempenha papel crucial na balança comercial, além de abastecer diversas nações no mundo. Contudo, uma contradição alarmante corrói as bases desse sistema: enquanto o Estado enaltece o agronegócio em discursos oficiais, o Poder Judiciário frequentemente autoriza a destruição dos meios de produção rural por meio de execuções judiciais cegas e patrimonialistas. A agricultura brasileira é mais do que um setor econômico — é expressão de vida, cultura e identidade nacional.
O agricultor, ao cultivar a terra, não é apenas um agente de mercado: é o guardião da soberania alimentar e o elo vital entre o solo e a sociedade. Seu trabalho materializa uma personalidade produtiva, conceito que traduz a dignidade do homem do campo e sua função social no desenvolvimento do país.
A Constituição Federal, ao consagrar a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a valorização do trabalho (art. 170) e a função social da propriedade (art. 186), estabelece um regime jurídico protetivo da produção agrícola. Esses princípios asseguram que o agricultor mantenha os meios necessários à continuidade do cultivo, à subsistência familiar e ao abastecimento nacional.
Quando o Judiciário autoriza a penhora de tratores, colheitadeiras, implementos agrícolas, terras produtivas ou até mesmo grãos destinados ao plantio da próxima safra, não está apenas satisfazendo um crédito: está decretando a morte civil do produtor e comprometendo a continuidade da cadeia alimentar. Essa prática revela uma incompreensão profunda sobre o funcionamento da atividade rural e suas implicações sociais.
O artigo 833, inciso V e §3º, do Código de Processo Civil, é cristalino: são impenhoráveis os bens indispensáveis ao exercício da profissão do devedor. Para o produtor rural, isso inclui expressamente máquinas, implementos agrícolas e demais instrumentos essenciais à atividade produtiva. Não se trata de privilégio de classe — é garantia do mínimo existencial produtivo, conceito que protege a capacidade de gerar renda e subsistência por meio do trabalho.
Jurisprudências recentes têm reconhecido essa proteção. O Tribunal de Justiça de Goiás suspendeu a penhora de maquinário agrícola essencial (Agravo de Instrumento nº 5712770-40.2025.8.09.0051). O Tribunal de Justiça de Mato Grosso impediu a busca e apreensão de trator indispensável à safra. O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.327.643/RS, reconheceu que bens vinculados à Cédula de Produto Rural são impenhoráveis, mesmo para satisfazer crédito trabalhista. Essas decisões representam avanços, mas por que ainda precisamos celebrá-las como exceções, quando deveriam ser a regra absoluta?
A proteção não pode se limitar ao maquinário. A terra produtiva, quando cumpre sua função social gerando alimentos e empregos, não pode ser tratada como ativo financeiro comum, passível de hasta pública indiscriminada. A propriedade rural que produz é base existencial de famílias inteiras, fonte de trabalho para comunidades e pilar da soberania alimentar nacional.
Igualmente absurda é a penhora de grãos destinados ao plantio ou à comercialização planejada. Esses produtos não são estoques ociosos — são capital de giro essencial, representam investimentos já realizados e garantem a continuidade do ciclo produtivo. Penhorá-los equivale a interromper o fluxo sanguíneo da atividade agrícola: o produtor não apenas perde a safra atual, mas fica impossibilitado de plantar a próxima. O mesmo raciocínio se aplica a instalações, silos, sistemas de irrigação e demais benfeitorias produtivas.
A Lei nº 4.829/1965 e a política agrícola constitucional (art. 187 da CF) criaram o crédito rural para promover o desenvolvimento da produção, não para estrangulá-la. Contudo, a aplicação mecânica das regras de execução tem transformado o crédito de fomento em crédito punitivo, subvertendo completamente sua finalidade pública.
O agricultor brasileiro opera em ambiente de altíssimo risco: depende do clima, enfrenta volatilidade cambial, sofre com pragas, convive com oscilações brutais de preços internacionais e arca com custos de insumos dolarizados. Quando inadimple, raramente é por má-fé — quase sempre é por fatores que fogem completamente ao seu controle. Punir essa inadimplência com a destruição dos meios de produção é duplamente cruel: primeiro pela dívida, depois pela impossibilidade de saldá-la.
A coerência constitucional exige que o crédito rural preserve sua razão de ser. Se a execução impede o agricultor de produzir, o sistema jurídico está negando sua própria finalidade. O credor também perde: sem produção, não há pagamento futuro possível. É uma lógica de terra arrasada que não beneficia ninguém.
É imperativo que o Poder Judiciário abandone a visão meramente patrimonialista das relações de crédito rural. O processo não pode ser instrumento de destruição da vida produtiva — deve servir à reconstrução e ao equilíbrio social. Quando um magistrado decide sobre o destino de um trator, de uma propriedade produtiva ou de uma safra armazenada, está decidindo sobre a continuidade de vidas, famílias e comunidades inteiras.
Proteger esses instrumentos não é proteger o inadimplemento — é preservar o meio pelo qual o produtor poderá honrar suas dívidas com dignidade e contribuir novamente para o ciclo econômico. É garantir que a agricultura continue cumprindo sua função essencial: alimentar o Brasil e o mundo.
O papel do Judiciário deveria ser o de protetor da continuidade produtiva, garantindo que o direito não se converta em máquina de exclusão social. A impenhorabilidade dos bens agrícolas essenciais não é tecnicalidade processual — é imperativo de sobrevivência nacional.
A proteção da personalidade produtiva do agricultor não é concessão graciosa, mas exigência constitucional e civilizatória. O agronegócio não pode ser celebrado nos índices econômicos enquanto os agricultores são sistematicamente destruídos nos tribunais. Essa contradição precisa terminar.
Preservar a personalidade produtiva do agricultor é garantir que o país continue produzindo, alimentando e crescendo de forma soberana. A terra, os grãos e os instrumentos de cultivo são mais do que bens materiais — são projeções da dignidade humana e expressões da soberania nacional. Proteger o agricultor é proteger o Brasil.
Charlene de Ávila – Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em Propriedade Intelectual na Agricultura do Escritório Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin – Advogado Agrarista. Especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do Escritório Néri Perin Advogados Associados.



