Afirmação é do professor Marcos Jank, coordenador do Insper Agro Global, que participou de debate sobre o assunto, em Nova York. “Opinião pública internacional não consegue enxergar que é plenamente possível produzir alimentos e energia”
O professor Marcos Jank, do Insper, um estudioso da questão da transição energética global, concedeu entrevista à Globo Rural às vésperas do fechamento da edição de outubro, no dia seguinte ao chegar de vários eventos da Semana do Clima de Nova York, onde participou, entre outros, de um debate no Brazil Climate Summit da Universidade de Columbia.
Ele conta que nas duas semanas que esteve por lá nunca viu o setor privado norte-americano tão animado como agora, ante a perspectiva de contar com os grandes subsídios anunciados pelo governo do presidente Joe Biden para empresas dispostas a investir em projetos sustentáveis de energia e transporte, com ênfase na eletrificação veicular.
Serão concedidos US$ 400 bilhões em créditos e incentivos fiscais, subvenções e pagamentos adiantados para descarbonizar a economia norte-americana. Ocorre que infelizmente biocombustíveis como o etanol foram relegados a segundo plano no programa dos EUA. Jank diz que a nossa matriz energética renovável é vista lá fora como uma “jaboticaba” cheia de reticências, ao supostamente se tratar de uma solução tropical que só funcionaria no Brasil.
GLOBO RURAL: Como o senhor vê a atual transição energética global?
MARCOS JANK: O primeiro ponto e o mais importante é que o mundo da energia mudou muito nos últimos anos, com a questão climática ganhando relevância não só nas discussões entre os governos, que vêm avançando em suas políticas públicas, mas principalmente no setor privado, que reage às pressões da sociedade civil. Quando fui presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), entre 2007 e 2012, a transição energética era vista como algo que iria acontecer rapidamente. Mas não foi o que ocorreu. Os investimentos e as mudanças de produtos e processos foram surgindo nos Estados Unidos, Europa, Ásia e Brasil, mas só se concretizaram nos últimos cinco anos, fruto da pressão dos reguladores e da sociedade por descarbonização das matrizes de energia e transportes.
GR: Então os setores de energia e transporte são os mais vitais?
JANK: Sim, absolutamente vitais para a transição climática. O que eu percebi em Nova York é que se o mundo realmente deseja combater as mudanças do clima, será preciso focar esses dois setores, que respondem juntos por 73% das emissões de gases de efeito estufa do planeta e que são os reais vilões do clima, ao dependerem tanto de produtos fósseis. É por isso que é nesses dois setores que vemos os maiores “breakthroughs” da atualidade [inovações em tecnologias, mercados e modelos de negócios]. E a corrida já está em andamento no mundo, com o envolvimento de governos e grandes empresas.
GR: A parceria entre governo e empresas é crucial nesse sentido?
JANK: Eu nunca vi tanto entusiasmo como nesses eventos das últimas duas semanas em Nova York, face à possibilidade de o setor privado receber uma montanha de subvenções governamentais para a transição energética. O principal programa que esteve em pauta nos debates foi o Inflation Reduction Act (IRA), lançado em agosto do ano passado pelo governo norte-americano, que prevê US$ 740 bilhões em cré- ditos fiscais e subvenções para apoiar investimentos voltados à mitigação climática, sendo US$ 400 bilhões apenas para energias limpas, com ênfase na substituição acelerada de motores a combustão por veículos elétricos. Vale destacar que US$ 216 bilhões em investimentos são dirigidos para investi-mentos (Capex) de corporações empresariais em energia limpa, transporte e manufaturas, entre elas as maiores em- presas de petróleo e gás do mundo, que com isso vão repaginar seu portfólio de produtos, processos e mesmo de localização geográfica. Daí a euforia do setor privado com o IRA.
GR: O que levou os EUA a criarem esse programa?
JANK: Os Estados Unidos ficaram muito atrás da China na corrida tecnológica da transição energética e de transportes. Hoje, a China domina a produção de equipamentos de energia solar e eólica, a extração de minerais críticos como cobalto e lítio e a produção de baterias e veículos elétricos, além de estarem na liderança do uso de hidrogênio para movimentar veículos leves e pesados. O fato é que a transição energética do planeta hoje depende fortemente da China. A face visível do IRA é incentivar uma retomada industrial sustentável dos EUA para combater a inflação que atingiu o país depois da pandemia. Mas a face oculta do IRA é incentivar investimentos de empresas americanas e internacionais em solo estadunidense, para gerar produtos 100% “made in USA” que permitam aos Estados Unidos vencerem a China na guerra de longo prazo da transição energética.
GR: Esse programa pode ser contestado?
JANK: Não existe governança para nada no mundo hoje, por causa do esvaziamento dos organismos multilaterais. No passado, esse programa certamente seria considerado como uma forma de protecionismo desleal pela Organização Mundial do Comércio (OMC), como aconteceu com o programa Ino-var-Auto, criado pelo governo brasilei- ro em 2012, que concedia subsídios e incentivos fiscais a empresas locais da área automotiva. Agora, por causa da “emergência climática”, os países estão livres para montar programas nacio- nais protecionistas que vão revitalizar as suas indústrias, com o objetivo de “ajudar o planeta”.
GR: Esse subsídio foi dimensionado?
JANK: Professores da Universidade de Columbia estimam que o IRA vai conceder subvenções e créditos fiscais da ordem de US$ 200 por tonelada de carbono equivalente evitada com investimentos em solo americano, ao passo que o valor negociado no mercado voluntário de carbono situa-se hoje entre US$ 5 e US$ 20 por tonelada de carbono. Ou seja, o investimento em carbono evitado promovido pelo IRA norte-americano custa pelo menos dez vezes mais que o custo do carbono no mercado voluntário, embora a molécula carbono seja exatamente a mesma em qualquer local do mundo. Na prática, o que estamos vendo é um “protecionismo climático”, que usa a emergência climática para justificar novas formas de protecionismo.
GR: Existe uma solução global?
JANK: A moda da transição energética lá no exterior é a eletrificação da frota leve de veículos e o crescimento da produção de energia eólica e solar. No caso dessas últimas duas fontes, há o problema de que elas são intermitentes, uma vez que não há garantia de regularidade de ventos e o sol produz energia apenas quando está presente. O mesmo acontece com o sistema hidrelétrico, pois a cada momento pode sobrar ou faltar água. Por isso, não se pode montar uma matriz energética unicamente em cima de energias intermitentes da natureza, que podem sobrar ou faltar em diferentes momentos do ano. A minha visão é que não há “balas de prata” na transição energética do planeta.
GR: Como o Brasil se insere no debate?
JANK: Precisamos ter alguma competência para debater, identificar e promover as melhores soluções, algo que definitivamente não está acontecendo hoje. Temos que voltar com força ao debate internacional sobre o potencial da bioenergia tropical, com foco na eletrificação veicular. O fato é que no intenso debate global sobre transição energética já passou da hora de sairmos da “jaboticaba” brasileira (carros flex, mistura de etanol na gasolina, disputa cana versus milho, cogeração de bagaço de cana) para avançar na discussão global sobre eletrificação veicular, células de combustível, etanol de segunda geração feito de bagaço e palhas da cana-de-açúcar, hidrogênio verde, SAFs, biometano, combustíveis marítimos e outros.
GR: Existe espaço no mundo para os biocombustíveis?
JANK: Com certeza. O Brasil tem hoje de fazer um esforço para mostrar ao mundo que a bioenergia tropical é factível e parte da transição energética global. Acho que a gente erra ao acreditar que os carros híbridos ou as misturas de etanol na gasolina ou biodiesel no diesel vão se tornar “soluções globais”. Temos que mudar o disco e fazer oferecer produtos que sirvam na matriz energética futura do resto do mundo, a exemplo do hidrogênio como fonte de energia de baterias em veículos elétricos e o SAF (Sustaina- ble Aviation Fuels), a partir de cana- -de-açúcar, milho ou óleos vegetais. Não existe hoje perspectiva concreta de eletrificação da aviação comercial, mas as empresas desse setor assu- miram a meta de neutralizar as suas emissões líquidas de gases de efeito estufa até 2050. Só aí temos um mer- cado potencial novo e enorme para os biocombustíveis do futuro.