Charlene de Ávila
Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura de Néri Perin Advogados Associados – Brasília-DF
Sob o amparo dos instrumentos de contratos de licenciamento ou Acordos, as multinacionais sementeiras, detentoras de alto poder concentrado de mercado, amarram as partes contratantes através de cláusulas consideradas anticompetitivas, abusivas e ilegais. Na verdade, estes contratos são típicos de contrato de adesão que não ensejam uma contraproposta do aderente, no caso o produtor rural, vez que as condições da proposta são estipuladas unilateralmente pelas multinacionais.
Consequentemente, seria cômico se não fosse trágico, as condições estipuladas por estas empresas para seus contratos são pouco claros e abusivos nas questões de propriedade intelectual. Essencialmente, em vez da simples venda de sementes, como ocorria antes, as empresas optaram por adotar a postura da Microsoft no licenciamento de seus programas, e passaram a licenciar sementes e cobrar por elas, por todo o ciclo produtivo e reprodutivo.
Indo mais adiante, as empresas sementeiras desenvolveram algumas estratégias de mercado. Além de aliar as tecnologias transgênicas protegidas por direito de exclusivas, entrelaçam as vendas com outros produtos de sua própria marca, como exemplo, transgênicos resistentes a herbicidas e a insetos, bem como por um sistema contratual vertical que entrelaça aos moldes de um “casamento de conveniência”, os transgênicos e os herbicidas.
Note-se que, ao desenvolver uma estrutura verticalizada de contratos de licenciamento, as empresas sementeiras controlam a produção e comercialização das sementes transgênicas, muito além do período de duração de suas exclusivas patentárias, impondo aos agricultores a recompra de suas colheitas, o uso de determinados herbicidas e proíbem que os agricultores guardem ou reservem as sementes para futuras colheitas.
As empresas sementeiras no Brasil que detém uma tecnologia protegida por patente “descansam em berços esplêndidos” na cobrança de seus royalties por estarem respaldadas por uma rede de parceiros e colaboradores que atuam como agentes na efetivação da cobrança.
A liberdade de contratar e a autonomia da vontade, quando excessivas, criam dificuldades nas relações negociais, vez que ao inexistir normas que regulem eficazmente os Acordos, a segurança jurídica fica “à deriva”, gerando decisões conflitantes nos tribunais e totalmente desprovidas de suporte legal. Além disso, o excesso de liberdade contratual gera efeitos paradoxais que minam esta mesma “liberdade” de contratar.
Outra análise se faz necessária (uma vez que existe uma prática usual no mercado de sementes) diz respeito ao pagamento de royalties pelo produtor rural na oportunidade do pós-plantio e calculado sobre o volume de grãos produzidos e não sobre a saca de sementes adquiridas (apesar de que nesta oportunidade também há a cobrança de royalties). Esta prática usual perpetrada pelas empresas sementeiras além de ser abusiva é ilegal. Ela gera uma série de distorções sobre o valor que efetivamente pode ser cobrado a título de royalties ao produtor rural pelo uso da tecnologia protegida.
Na prática, um produtor adquire um determinado número de sacas de sementes e obtém um crédito de isenção de pagamento de royalties até um determinado limite de grãos. Porém, pelo alto grau de eficiência no plantio e manejo da safra, obtém uma produtividade maior que o limite estabelecido, sujeitando-se ao pagamento de royalties pelo excedente. Paradoxalmente, sofrerá uma penalidade por conta de sua alta performance e pagará royalties sobre a produção que superar a produtividade esperada pela quantidade de sementes adquirida, o que afronta o princípio da razoabilidade estabelecido pelo Direito.
E se porventura produzir menos, não se permite, segundo essa sistemática, a utilização do crédito remanescente na safra subsequente. Embora, nessa situação, há que se aferir se a não produtividade decorre do mal-uso da tecnologia, pelo qual responde o produtor rural, ou pela ineficácia da tecnologia patenteada, pelo qual responde a empresa de biotecnologia.
Outra distorção advém da contaminação da safra de soja convencional pela soja transgênica, o que é motivo de grande preocupação, de modo que, mesmo ao produtor rural que produziu soja convencional, visando a um mercado diferenciado, e se viu prejudicado pela contaminação da safra, deverá se sujeitar ao pagamento de royalties sobre toda a produtividade na comercialização do produto. Não só será prejudicado pelo pagamento indevido de royalties, decorrente de fato alheio à sua vontade e muitas vezes até desconhecido por ele, como, igualmente, a provável perda de preço na venda do produto, levando-se em conta que o mercado de soja convencional é bem mais restrito e, por isso, mais valorizado internacionalmente.
Com a recente constituição de uma joint venture capitaneada pelas empresas Basf, Bayer, Corteva e Syngenta, aprovada sem restrições pelo CADE, o volume de isenção será único para todas as biotecnologias integrantes da joint venture “cultive biotec”, isto é, 7,5% sobre o volume comercializado – cobrança na moega.
Se o produtor reservar sementes para uso próprio, deve notificar o sistema da indústria e fazer o recolhimento dos royalties de acordo com a área declarada e de acordo com a expectativa de produção. O modelo de cobrança “na moega” ou royalties pós-plantio faz com que o produtor rural aceite o modelo de cobrança dos royalties da Monsanto que é de 7,5% da produção, conforme já mencionado, fora a contaminação de sementes ou grãos que poderá acontecer, fato que torna oneroso o bolso do produtor.
Não é juridicamente cabível a cobrança de royalties sobre a área plantada ou sobre a produção. Mais uma vez, os royalties não devem ser pagos sobre a produção, principalmente sobre a forma de retenção. Não é demais afirmar que, diante desta nova constituição da joint venture, existirá um monopólio ainda maior, onde as empresas pequenas irão se extinguir cada vez mais. A nossa lavoura passará a ser a mais cara de toda história.