Resolução do CNJ pode dificultar a reintegração de posse e incentivar invasões de terra
A edição de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem despertado insegurança no meio rural, pois pode dificultar a vida do produtor rural que tiver áreas invadidas. De acordo com advogados, os efeitos da medida podem ser uma reintegração de posse mais demorada e um “incentivo velado” às invasões coletivas. Deputados trabalham para propor projetos de lei que desmotivem as invasões e garantam segurança jurídica aos proprietários.
A Resolução CNJ 510/2023, publicada no dia 26 de junho, criou Comissões para tratar de Soluções Fundiárias em nível nacional e regional, no âmbito do CNJ e dos Tribunais. Por meio da resolução, foram estabelecidos protocolos para ações que envolvam despejos ou reintegrações de posse.
O CNJ tem histórico de estabelecer normas que excedem as próprias decisões nas mais altas instâncias da Justiça, como o próprio Supremo Tribunal Federal.
As medidas propostas na resolução acendem um sinal de alerta para advogados que lidam com ações de direito agrário. Eles apontam a complexidade das ações propostas, bem como um possível estímulo velado às invasões coletivas.
Por outro lado, a presidente do CNJ, ministra Rosa Weber, afirmou, em seminário sobre o tema, que a criação das comissões para solução de conflitos fundiários deve “garantir segurança jurídica, previsibilidade, eficiência e, acima de tudo, a uniformidade mínima necessária para o enfrentamento da questão sem descurar das peculiaridades regionais”.
Resolução prevê realização de audiências e cadastramento de invasores antes da reintegração de posse
O texto da resolução prevê a realização de audiências de mediação ou de conciliação em qualquer fase do processo, no entanto, aponta também que o esbulho ou a turbação (perda de posse total ou parcial da propriedade) deve ter ocorrido há mais de um ano. Com a realização das audiências e de todo o protocolo previsto na resolução, o CNJ almeja que “as decisões judiciais de reintegração de posse sejam cumpridas de forma justa e preocupada com as questões sociais”.
Dentre as medidas constantes da resolução, está prevista a criação de um plano de ação e de um cronograma de desocupação. No plano de ação, há a previsão de um cadastramento dos invasores das propriedades, além da identificação do seu perfil socioeconômico. O cadastro, de acordo com a resolução, deverá ser feito pelas prefeituras, objetivando a realocação dos mesmos bem como o encaminhamento para órgãos de assistência social e programas de habitação.
Com a criação das comissões nacional e regionais para buscar soluções para os conflitos fundiários, foram previstas também as visitas técnicas nas áreas de conflito. A resolução prevê que a atuação da Comissão Regional deverá ocorrer no prazo de 90 dias, podendo ser prorrogada por prazo que não é especificado no documento.
Ainda de acordo com o texto, as partes nas ações de reintegração de posse serão avisadas das visitas, incluindo movimento social ou associação de moradores que dê suporte aos invasores.
Efeito das medidas propostas pelo CNJ podem ser “incentivo velado” para invasões
Embora não tenha ligação direta com o disposto na resolução, para o advogado Néri Perin, o efeito pode ser o aumento das invasões coletivas. Além disso, a reintegração de posse pode demorar mais.
“Está havendo uma espécie de incentivo velado para invasões coletivas. Estão sendo criadas associações para dar ares de coletividade a invasões de terras coletivas. E, não raras vezes, são feitas para invadir e “vender – exigir” altos valores dos proprietários, justamente porquanto a reintegração efetiva retardará. É um desvio grave, que beneficia a torpeza. Mas, evidentemente, não pode ser declinado diretamente à resolução, mas à falência do ser humano”, afirmou Perin.
O advogado e conselheiro da Sociedade Rural Brasileira (SRB), Francisco Bueno, aponta que a resolução trará complexidades e agravará a insegurança jurídica no campo. “Ao estabelecer complexidades para a solução de conflitos agrários, a Resolução pode trazer custos de transação que gerem insegurança ao investidor do agronegócio e favorecer a atuação de movimentos violentos de reivindicação política, agravando o cenário de insegurança jurídica no campo”, avaliou Bueno.
O efeito prático das medidas propostas na resolução do CNJ ainda não pode ser aferido em razão de se tratar de norma recém-publicada. Além disso, a resolução previu o prazo de 30 dias para adequação e criação das Comissões Regionais de Soluções Fundiárias.
Para o advogado agrarista Paulo Roberto Kohl, a medida é audaciosa. “Sabe-se que alguns Tribunais já atuam neste sentido, a exemplo do Tribunal de Justiça do Paraná e de Santa Catarina […] Porém, a realidade no país é muito diversa, com particularidades regionais, orçamentárias e administrativas específicas de cada estado da Federação”, destacou Kohl.
Kohl afirma ainda que a resolução não revogou o crime de esbulho possessório previsto no Código Penal, nem impede o desforço imediato – direito à autoproteção da posse – previsto no Código Civil. “A resolução também não poderá servir de incentivo a novas ocupações irregulares ou a criação artificial de situações consolidadas, a impedir eventual comando judicial de reintegração de posse”, disse Kohl.
Juiz poderá decidir sobre encaminhamento de reintegração de posse à Comissões previstas pelo CNJ
Embora a resolução do CNJ tenha criado comissões para auxiliar nos processos de reintegração de posse, sempre caberá ao juiz natural da causa decidir se encaminhará ou não o processo à Comissão de Soluções Fundiárias. O destaque é do advogado agrarista Paulo Kohl. A resolução do CNJ regulamenta previsão já disposta no Código de Processo Civil sobre a realização de audiências de mediação prévias à medida de reintegração de posse em ocupações coletivas. Mas a criação das comissões é uma inovação.
Ao falar sobre o tema em seminário promovido pelo CNJ, a ministra Rosa Weber ressaltou que as comissões não têm poder decisório no processo judicial, tampouco estão autorizadas a interferir na independência do juiz ou da juíza da causa. “Podem elas colaborar com o magistrado ou a magistrada do processo, no que diz com a instauração de ambiente processual e negocial próprio para uma intervenção estrutural no conflito fundiário em julgamento”, disse a ministra.
Já para o advogado Francisco Bueno, embora já se tenha a previsão das audiências, os novos procedimentos podem implicar em mais demora nos processos. “Ao impor novos procedimentos decisórios, inclusive com audiências que nem sempre podem ser marcadas em cronograma de urgência, o risco que se corre é de demora na prestação jurisdicional e de perpetuação de estado de fato incompatível com a segurança jurídica e o direito de propriedade”, destacou Bueno.
Kohl destaca ainda que o texto da resolução aponta que não é toda e qualquer reintegração de posse que se admite a intervenção das Comissões. “Pelo texto, se admite a intervenção naquelas que dizem respeito a imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis”, explicou o advogado agrarista.
Deputados da CPI do MST apontam demora e relativização do direito de propriedade
A resolução do CNJ despertou a preocupação de deputados membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) contrários às invasões de terra.
O deputado Luciano Zucco (Republicanos-RS), presidente da CPI do MST, avalia que a resolução pode trazer insegurança jurídica ao campo. “Na minha avaliação, o direito à propriedade não pode ser relativizado. Se produtor rural detém o título ou escritura, ou seja, a documentação que lhe confere a posse da terra, ele está protegido legalmente de qualquer tentativa de expropriação do imóvel. Dessa forma, se sua área for invadida, a reintegração de posse deve ser imediata. Flexibilizar a Constituição é algo perigoso e só cria mais insegurança jurídica no campo”, disse o parlamentar gaúcho.
Além dele, o deputado Kim Kataguiri demonstra preocupação com os planos de ação para o cumprimento das reintegrações de posse. “Esse mandado de reintegração de posse só pode ser expedido depois que a prefeitura cadastrar essas pessoas e colocar essas pessoas num programa de residência. Acabou o direito de propriedade. Você foi invadido. Mas o que você tem a ver com um programa de habitação da prefeitura de um sujeito que invadiu a sua propriedade? E se a Prefeitura demorar 1 ou 10 anos para fazer aquele cadastro?”, questionou Kataguiri.
Soluções legislativas serão propostas por deputados da CPI do MST
Tendo em vista a competência para legislar sobre o tema, a CPI do MST deve, ao final dos trabalhos, entregar uma série de projeto de lei para garantir que as invasões sejam desmotivadas e os invasores devidamente punidos. Dentre as motivações para a apresentação de novos projetos de lei está a criação de uma espécie de salvaguarda para invasores de propriedade.
Essa questão foi apontada por Kataguiri como um dos efeitos da resolução do CNJ. “Enquanto nós estamos investigando invasões criminosas, o CNJ está dando mais salvaguarda para quem invade do que para quem é invadido. Esse tipo de conduta e esse tipo de medida legal precisam ser combatidas pela CPI [do MST], porque a CPI também tem a competência legal de propor solução legislativa”, completou o deputado.
Zucco afirma que a Comissão apresentará um conjunto de projetos de lei, chamado de “Pacote Invasão Zero”, para coibir tais condutas. “Na CPI do MST, estaremos apresentando no relatório final um conjunto de projetos de lei que tem como objetivo punir com mais rigor as invasões de propriedades produtivas privadas. Entre as sugestões, destaque para as propostas que excluem os invasores de programas relacionados à Reforma Agrária, regularização fundiária e linhas de crédito voltadas ao setor”, disse o presidente da CPI do MST.
Por Aline Rechmann
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